De inimiga da humanidade à esperança
Clássicos as vezes são aqueles que são clássicos mesmo que muito polêmicos. Por Lynn Okamoto, na nossa coluna da semana sobre animes clássicos temos “Elfen Lied”, mostrando que às vezes violência, excentricidade e música em latim formam um casamento de sucesso para a cultura pop japonesa.
Entre o sacro e o profano
Uma mutação em alguns humanos gerou uma nova e poderosa espécie de seres nomeados como Diclonii. Idênticos a humanos normais, um Diclonius é descrito como na aparência como idênticos a um homo sapiens, mas possuindo um pequeno chifre ligado ao seu crânio, além de cabelos e olhos com tons bem mais diversos que aqueles que temos como naturais.
Para além dessas diferenças, Diclonius possuem poderes psíquicos avassaladores, capazes de dizimar exércitos inteiros utilizando suas “mãos invisíveis”, os vetores, tornando-os armas biológicas naturais. Em razão disso, o governo japonês prendeu e realizou testes com uma diclonius a qual deram o nome de “Lucy”, capturada ainda criança.
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Uma oportunidade surge, e com nada senão ressentimento em seu coração, Lucy escapa e dizima todos os soldados que se põe em sua frente sem grandes dificuldades. Durante a fuga, Lucy acaba sofrendo um impacto com a cabeça com o aparelho metálico que a restringia, desmaiando e sendo encontrada, nua e sem memórias, em uma praia pelos primos Kouta e Yuka.
Sem saber falar senão grunhir, ela recebe o nome de “Nyu” pela família, em resposta ao único som que era capaz de fazer. Enquanto outrora sanguinária e cheia de ódio, Nyu é ingênua e infantil como uma criança de 5 anos, mas no corpo de uma adolescente. Após destruir um presente da falecida irmã de Kouta, Lucy foge após o garoto brigar com ela.
Arrependido de ter deixado a indefesa Nyu por aí, os primos decidem ir atrás da garota temendo que algo ruim aconteça. Para surpresa de todos, Nyu é encontrada antes por oficiais responsáveis pelo seu encarceramento, o que desperta a personalidade “Lucy” e causa um massacre enquanto Kouta assiste tudo — descobrindo que as autoridades são um perigo para Nyu, que também não é tão desamparada assim.
Ao longo da série, Lucy e cia. encontram outros diclonius e são confrontados com o passado de Kouta, bem como o de Kaede durante seus tempos de orfanato. Vítima de abuso físico e psicológico desde cedo, a grande pergunta de “Elfen Lied” parece gritar: os diclonius se tornam incontrolavelmente violentos a partir de certa idade ou isso é resultado da forma como são tratados?
Abençoado é o homem que persevera a tentação
“Boo, os humanos são os verdadeiros monstros!“
Um plot tão recorrente desde a sua explosão de popularidade com “Frankenstein” de Mary Shelley e aqui tão bem conceptualizado, ao menos até chegar na parte da execução. “Elfen Lied” é lembrado pela sua violência extrema, gore, nudez, e uma canção em latim que fica na cabeça — e tudo isso é um pouco de verdade, mas que a discussão não se limite a isso.
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O passar de duas décadas não foi dos mais gentis com “Elfen Lied”, que ao menos no ocidente tem perdido popularidade para outros títulos. As épocas não são as mesmas, e violência gráfica apresentada de forma rebuscada não convence mais tanto assim. Uma recepção diferente entre o público japonês muito se explica, entre outros, como o mangá é ligeiramente diferente e não tão difundido desse lado do globo.
Engana-se quem enxerga apenas a face sanguinolenta em detrimento de seu conteúdo. Apesar das muitas falhas, “Elfen Lied” ainda conta com alguns bons acertos, embora apresente de forma mais rasteira, quando comparado ao material original, a sua construção narrativa. Para falar disso, todos os caminhos levam ao tema da série: “Lilium”, por Kumiko Noma.
Ōs iūstī meditābitur sapientiam / A boca do justo meditará a sabedoria
Et lingua eius loquētur iūdicium / E sua língua dirá o julgamento
Beātus vir quī suffert tentātiōnem / Abençoado é o homem que persevera em tentação
Quoniam cum probātus fuerit accipiet corōnam vītae / Pois, passada a provação, receberá a coroa da vida”
Letra de Lilium, por Kumiko Noma. Tradução em português: Woo! Magazine
Em uma das escolhas mais inusitadas para uma abertura de anime, “Lilium” emula um canto gregoriano com passagens em latim e grego direto da Bíblia e liturgia católica: Tiago 1:12, Salmos 36:30 (ou 37:30, a depender da versão), bem como “Ave Mundi Spes Maria” juntam-se nesse caldeirão de profunda melancolia para cantar o martírio da personagem Lucy.
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Na sequência em animação — porque a canção é repetida diversas vezes ao longo da série, especificamente os momentos mais brutais — compõe também paródias de pinturas de Gustav Klimt, como o famoso “O Beijo”, e que aqui ganha um significado muito especial. Sem poder consumar essa paixão proibida, Kouta e Lucy são os dois amantes, mas apenas têm contato físico com manequins que representam um ao outro.
Mais além, essa canção é um recado para a audiência de que Lucy, quem nunca foi amada e guarda tanto rancor da humanidade, apesar de tudo é capaz de amar e está disposta a se sacrificar pela humanidade, que por ela nunca fez nada de bom. Um simbolismo poderoso, mas que é usado até a exaustão, e ao qual “Elfen Lied” peca ao depender
Há várias teorias e paralelismos defendidos por fãs de como a série representa coisas que, com a devida licença, são uma extrapolação lógica ao conteúdo da série. Em última análise, é preciso botar em contexto que como uma religião minoritária e constantemente utilizada para representar um misticismo quase lovecraftiano — indescritível — autores japoneses se apropriam de símbolos cristãos com alguma recorrência, fazendo isso melhor como o caso de “Death Note“, ou vítima da própria pretensão, como “Elfen Lied”.
O anime tenta, mas não conseque convencer. Os mistérios se seguram enquanto o show os deixa sem aparente solução, cabendo ao espectador ligar as peças, mas falta diálogo. Lucy, a personagem com a qual mais devemos empatizar, tem vários flashbacks para mostrar como sua infância foi sofrida, contudo o conjunto passa a impressão que, direto de um drama mexicano de baixo orçamento, essa garota está marcada para sofrer na sua frente porque sim — e a resposta é simples: o roteiro escolhe o choque como o caminho mais fácil.
Que não se leve a mal, “Elfen Lied” tem a faca e o queijo na mão com temáticas muito interessantes, mas joga o queijo fora e enfia a faca no próprio peito para causar horror na audiência. Falta verossimilhança, e o emprego de personagens exagerados não ajuda a manter um clima condizente. A título de exemplo, em determinada cena, uma cientista prestes a ser morta por uma diclonius se joga no chão aos prantos porque iria morrer virgem; tudo em um sexualizado e patético choro infantil.
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Com nome baseado no poema alemão de mesmo nome (vide os simbolismos com relógios), uma protagonista com alusão hereticamente a Lúcifer e Jesus Cristo, e uma canção super original, “Elfen Lied” prova que não bastam boas referências se a remixagem for feita de qualquer jeito.
Clássicos são aqueles que permanecem vivos após nós e se renovam com o passar dos anos. Contraditoriamente nessa lista, seu reconhecimento popular como um clássico, inclusive inspirando a aclamada “Stranger Things”, põe em questão que nem tudo que é canônico é necessariamente bom. 20 anos depois, “Elfen Lied” pode ser um anime divertido, mas vai ser preciso de muita espirituosidade para ignorar sua inconsistência.
Imagem Destacada: Divulgação/Crunchyroll
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