A peça “Aquário com Peixes”, escrita por Franz Keppler e dirigida por Marcela Lordy, esteve em cartaz no SESC Santana nos meses de maio e junho. A peça aborda, de maneira exemplar, uma crise de relação entre um casal maduro de mulheres, quer seja entre elas, quer seja consigo mesmas. Em termos mais diretos, é uma peça que fala da angústia das decisões da vida adulta e como elas afetam as outras pessoas.
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A peça narra a história de Anita, uma promotora pública, vivida por Carolina Mânica, e Lídia, uma astróloga pisciana extremamente sensível e emotiva, interpretada por Natallia Rodrigues. A intensidade de Lídia encanta Anita, que aos 40 anos e após se divorciar, vive sua primeira relação com uma mulher. O público testemunha a descoberta mútua e o desenvolvimento dessa paixão, que precisa enfrentar e superar suas diferenças. No meio da história, Lídia descobre que está doente e que pode não sobreviver, o que aprofunda o drama da relação entre as duas, tendo em vista que Anita deve escolher entre continuar o relacionamento que não lhe faz mais feliz ou seguir sua vida. Afinal, somos realmente responsáveis pela pessoa que escolhemos nos relacionar?
O texto de Keppler é sensível e carregado de camadas que nos permitem ver a nu os sentimentos das personagens, tendo sido regido pela competente direção de Marcela Lordy, que conseguiu tornar o texto e todos os elementos teatrais um objeto extasiante de contemplação. Trata-se, nesse caso, de saber guiar diversos mecanismos teatrais e conduzi-los para o que foi um espetáculo, o que realmente poderia ser uma perda significativa se não tivesse passado pelas mãos da diretora. Evidentemente, não estamos descartando o trabalho dos outros profissionais.
A cenografia de Fernanda Carlucci, Fernando Passetti e Guilherme Françoso conseguiu traduzir o texto para o artifício material da construção do cenário. De fixo, há apenas a luz, que se acende e apaga conforme a necessidade do texto, cujo projeto de iluminação foi desenhado por Cesar Pivetti, e o aquário, que ocupava o lado direito do palco, lugar dominante da personagem aquariana Anita. A boca circular desse aquário aparecia na forma de um círculo de iluminação no lado do palco da pisciana Lidia, o que vai de encontro com algumas cenas em que Anita grita e usa o objeto, expressando suas angústias, tal como fazia com sua parceira.
Entre as personagens, havia uma placa transparente, que conforme a necessidade da história servia como um aquário que abrigava duas peixinhas, nomeadas conforme as personagens do filme Azul é a cor mais quente (metáfora para as protagonistas do drama e reforço da homoafetividade), e também servia como um símbolo da relação entre as duas, com distanciamentos em que uma não conseguia ver a outra, por exemplo.
As personagens são muito convincentes e regidas pelas características de seus signos. Anita (Carolina Mânica), é uma promotora pública, aquariana, que tem tendências radicais baseadas em sua euforia, preza sua independência, é idealista e gosta de gozar a liberdade. Carolina traz esses elementos em sua postura tensa, tom de voz cansado, decisões repentinas com tons animados etc. Já Lídia (Natallia Rodrigues) é uma pisciana solitária, muito sensível, cuja sensibilidade e intuição combinam com a escolha de sua profissão, astróloga, o que somado ao seu lado sonhador, desenha sua facilidade em se iludir. Natalia transparece essas características com muita fluidez, dinamicidade e, sendo a personagem com o tom sentimental mais marcado, transita bem entre as emoções em todo o seu corpo.
Essas diferentes personalidades articulam os dilemas pessoais e os conflitos relacionais da peça, e as excelentes atuações trazem uma camada de realidade para a história, que em dado momento é possível se confundir entre estarmos vendo uma atuação ou um caso real, tendo em vista que a química entre as atrizes é muito boa.
A temática da crise de relacionamento, da angústia da constante descoberta de si, de como podemos afetar outras pessoas é evidente e espontânea, de modo que conseguimos identificar como elas se desenvolvem no cotidiano, quer seja de modo discreto, quer seja de modo mais explícito. Ainda, cabe mencionar a representação de personagens lésbicas, que não se reduzem a um estereótipo, e elas são personagens realmente representativas, lidando com conflitos comuns à maior parte das pessoas, com suas especificidades enquanto recorte feminino e sáfico.
Um último elemento que corrobora na construção dessa virtuosa peça é o tempo. Não aquele de duração da peça, pois em sessenta minutos a história consegue nos mostrar o que propõe, mas o tempo cronológico da narrativa. Esse último é não-linear, construído como um quebra-cabeça, onde exploramos fragmentos de tempos diferentes para entender a relação entre Anita e Lídia e seus traços de personalidade, que vão se encaixando na narrativa, e de maneira alguma confunde o público, pois a partir da repetição de algumas falas do texto, em conjunto com a repetição corporal das atrizes/personagens, o espectador se sente ambientado.
O enredo explora, articula, investiga a alma humana e desenvolve um vínculo com o público ao trazer o mundo do conhecido, abordar inseguranças e não mostrar caminhos, mas provocar novos pontos de vista, de modo que tudo o que citamos ao longo do texto conduz o público a uma catarse.
Diante de tudo o que expomos, não há como atribuir um juízo de valor ruim à peça: Ansiamos por seu regresso aos palcos.
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