A peça Cárcere ou Porque as Mulheres viram búfalos, da Companhia de Teatro Heliópolis, foi encenada entre os dias 21 e 23 de abril no SESC Interlagos. Trata-se de uma peça de teatro marginal, em que a marginalidade, partindo do conceito de Ferréz, escritor periférico, deve ser compreendida como “cultura da periferia feita por gente da periferia e ponto final.” (FERRÉZ, 2004, p.02). A temática central da peça é o movimento dialético entre mulheres e cárcere.
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A presença da dialética ocorre no próprio título da peça, onde a partícula “ou” não implica uma exclusão de um dos termos, mas a coexistência entre os elementos que media. A peça trabalha através de pares opostos, tais como o mundo masculino e o feminino, prisão e liberdade, cárcere e casa, entre outros. Esse movimento aparece no cenário, através da constante ressignificação de objetos utilizados nos diversos ambientes; na música, onde o tambor de religiões de matriz africana soa com o violino; no palco, que é o local de dança e atuação; na relação entre os personagens, de mundos opostos e ao mesmo tempo compartilhados; e no roteiro, que alterna entre monólogos e diálogos. Enquanto teatro marginal, pode-se dizer que o par sociedade/centro e margem/periferia, se forma através “[…] [d]o confronto, em lugar da conciliação; através da exposição da violência, em lugar de seu ocultamento” (ROCHA, 2006, p.23). Concluímos, assim, que o cárcere é o elemento mediador desses pares.
O roteiro, assinado por Dione Carlos em conjunto com a companhia, conta a história de duas irmãs, Maria dos Prazeres e Maria das Dores, cujo filho da última, Gabriel, é preso acusado do roubar um celular. A partir desse acontecimento, ocorre a cisão da peça para dois momentos que se alternam: a vida na prisão, do lado de Gabriel, e a busca por justiça da mãe e da tia do garoto do lado de fora. Em ambos os casos, o público vê os agentes envolvidos nos dois lados do encarceramento. O cárcere não é apenas um título, mas uma personagem imaterial que se dissolve simbolicamente nessas mulheres e materialmente na condição de Gabriel.
A peça não se constrói como uma narrativa de final feliz, tal como um conto infantil, nem tampouco apresenta uma saída para esse problema que atravessa historicamente o Brasil. Tal tema não permite a romantização da vida na prisão e seus desdobramentos, como se observa em alguns musicais. Ao contrário, cada cena impõe ao espectador o confronto com o senso comum, que passa a ser articulado a partir do ponto de vista apresentado na forma de monólogos por cada personagem que compõe o mundo prisional, quer seja o médico, o segurança, os próprios prisioneiros, entre outros tipos sociais.
A peça mostra, a partir do personagem Gabriel, que “a figura do criminoso abre um espaço para todo tipo de discriminação e reprovação, com total respaldo social para isso” (BORGES, 2019, p. 23), mesmo que, como descobrimos nos instantes finais da peça, tenhamos a confirmação de que o garoto não roubou o celular e que foi preso pelo simples fato de ser um garoto negro no local e hora errados. Existe, assim, uma denúncia explícita ao racismo.
Do lado de fora da prisão, ocorre um movimento similar: a mãe e a tia de Gabriel buscam modos de tirá-lo desse lugar e, enquanto isso, vamos descobrindo que na família delas, todos os homens possuem um histórico de encarceramento. Um dos grandes acertos da peça é mostrar como as mulheres negras se tornam o eixo de sustentação da família enquanto seus parentes masculinos estão presos. Tal ato concorda com a intelectual Vilma Reis, pois
Qualquer entendimento dos discursos de criminalização de jovens-homens-negros passa pela leitura do que se pensa na sociedade sobre mulheres negras, pois são a elas que se imputa a culpa pelo nascimento, em grande medida, a responsabilidade legal de uma geração, que o conservadorismo considera “indesejada”.
(REIS, 2015, p. 49)
As personagens Maria dos Prazeres e Maria das Dores têm plena consciência disso, de tal modo que a estrutura do roteiro as separa, onde Maria dos Prazeres, vivida por Dalma Régia, ganha mais destaque, confrontando o público com relatos sobre diversos temas, como a condição de esposas de homens envolvidos com crimes, da ausência de apoio do Estado, o tratamento dentro de comunidades, entre outros. Maria das Dores, mãe de Gabriel, vivida por Jucimara Canteiro, aparece um pouco menos, mas sempre que vem ao palco, conta sobre a sua luta pelo filho e cenas como a revista violenta que vivenciou na prisão, em que o bolo levado para comer com Gabriel foi estraçalhado pela polícia em busca de algo impróprio, ou ainda sobre a dificuldade financeira que passa a enfrentar em busca de advogados e de quaisquer outros meios que possam tornar a dura vida do garoto na prisão mais confortável, são apresentadas. A cena do relato da sua primeira consulta com a advogada é um quadro sensível, mas demonstra que
“A falta de acesso à justiça, a advogados e defensores com tempo e qualidade desse tempo para atendimento de vítimas, a moralidade, o tratamento desigual baseado no fenótipo, são todos indícios de que há, na verdade, uma constante insegurança sobre a garantia dos direitos no contato com esse sistema.”
(BORGES, 2019, p. 87)
As personagens, portanto, são sustentadas pela força e pela esperança, em um país que as violenta de diversas formas possíveis. Em síntese, a peça traz de maneira marcante a presença feminina e suas relações com a esfera do cárcere.
O trabalho da Companhia de Teatro de Heliópolis, na direção de Miguel Rocha, que inclusive ganhou o prêmio Shell na categoria Direção desse espetáculo, é primoroso ao abordar não um tema social abstrato, mas específico e bem localizado, o que é sentido na conexão do grupo no palco e nos diversos setores que compõe sua preparação. O trabalho é claramente coletivo e há a constante afirmação, por parte dos personagens, daquilo que se é, da afirmação de seus lugares sociais e do senso comunitário.
Se a catarse aristotélica faz o espectador sentir terror e piedade que seriam monstruosos se não fossem teatrais, o que causaria a emoção estética prazerosa, o grupo supera esse efeito, pois impõe ao espectador seu processo emancipatório, uma vez que é monstruoso porque é real. Sou inflexível ao afirmar que é impossível sair da peça sem se sentir positivamente incomodado e deslumbrado.
Embora eu tenha dado maior destaque à atuação dos protagonistas, cabe mencionar que o grupo em geral está de parabéns. Os monólogos que acontecem na prisão são todos muito bem encenados, assim como o relato do estupro sofrido pela prima de Gabriel, que chega a arrepiar os pelos e a acelerar o batimento cardíaco do público.
Em relação ao cenário, a cenografia de Eliseu Weide, a cenotecnia de Wanderley Silva e o trabalho de iluminação de Miguel Rocha e Toninho Rodrigues são um grande exemplo de como cenários simples podem ser muito bem utilizados com criatividade. Uma grande porta de correr ao fundo com uma pequena janela semelhante a uma grade, grades arrastáveis dispostas no palco e a alternância bem dirigida das cores e intensidades de luz foram o suficiente para levar o público aos diversos ambientes que a história nos conta.
O espaço alimenta insegurança, tensão, atenção direcionada, incômodo e aconchego visual, elementos esses que vão de encontro ao que a peça propõe. Como exemplo, a peça traz referências visuais ao massacre de Carandiru, o que vai sempre trazendo para o público um novo olhar para aquilo que já é conhecido. Dessa forma, a ambientação é surpreendente a cada momento do roteiro.
Outro fator que contribui para o movimento dialético da peça é a dança, recurso muito utilizado ao longo da apresentação. Ela possui influência de religiões de matriz africana, Umbanda e Candomblé, e é onde se vê mais claramente o “porque as mulheres viram búfalos”.
A peça começa tal como a abertura dos trabalhos dessas religiões, trazendo a orixá Iansã-Oyá, divindade concebida como guia dos mortos, mas retomada nessa história sobretudo como guerreira implacável e imponente, que dá força às mulheres e é reparadora das injustiças sofridas pela população negra. A divindade vestia a pele de búfalo, animal forte que alude à sua força.
É importante salientar que ocorre outra separação na peça: o mundo divino e o mundo humano. Eles não coexistem no palco e se relacionam pela dança, pela força e predominância femininas, mas sempre mediadas pela situação do encarceramento. A peça abre e finaliza com uma referência direta à orixá, mas os dois mundos são separados. Entretanto, ela define a coreografia e algumas músicas, além de articular no palco os corpos masculinos e femininos.
A dança é um elemento crucial na peça, pois através dela nós vemos os corpos em sincronia, o balanceamento com o mundo do drama e coloca em xeque a ideia de protagonismo, pois nos momentos em que ela surge, todo o elenco participa e o público sente estabelecido um vínculo. O ator que interpreta Gabriel, personagem-chave da peça, ganha mais presença de palco nos momentos da dança, por exemplo.
Em relação ao tempo da peça, achei muito longa, o que a tornou cansativa. Contudo, não há como negar que a grandiosidade temática e técnica que a peça possui não seria alcançada se ela fosse mais curta. Nesse sentido, após as duas horas em que seguimos a história, a pergunta que fica é: Acabamos de demonstrar que o sistema carcerário é frio, cruel, danoso e ineficaz. Vamos consertar isso quando?
Concluindo, faço coro a Juliana Borges (2019, p. 109) ao afirmar que “[…] discutir as condições de vida e de vulnerabilidade de nossas comunidades, de nossas mulheres mais invisibilizadas pelo sistema prisional deve ser um dever de nossas pautas mais importantes.” Além disso, torno a repetir que não há como sair da peça sem ter se transformado. O trabalho da Companhia de Teatro Heliópolis é excelente e espero vê-lo mais vezes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Pólen; Sueli Carneiro, 2019. 143 p. Coleção Feminismos Plurais.
FERRÉZ. “Contestação”. Caros amigos. “Literatura marginal.” Abril, 2004
REIS, Vilma. Atucaiados pelo Estado: as políticas de segurança pública implementadas nos bairros populares de salvador e suas representações de 1991 a 2001. 2015. 247 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Ciências Sociais, Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015.
ROCHA, João César de Castro. A GUERRA DE RELATOS NO BRASIL CONTEMPORÂNEO. OU: “A DIALÉTICA DA MARGINALIDADE”. Letras, Santa Maria, v. 32, n. 1, p. 23-70, jan. 2006.
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