O monólogo “G.A.L.A.”, dirigido pelo célebre dramaturgo e diretor Gerald Thomas, traz Fabiana Gugli ao papel-título e foi apresentado no SESC Belenzinho do meio de setembro ao começo de outubro. A peça, trabalhada com cores vibrantes que complementam toda a ambientação, trata da angústia do sujeito contemporâneo frente sua condição de constante exposição à aceleração da vida.
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A construção começa pela provocação que abre o espetáculo: um crânio iluminado no meio do mar. Das múltiplas leituras que essa ambientação inicial traz, vale ressaltar que o crânio é o símbolo do pensamento e, portanto, do comando supremo. Ainda, pode simbolizar o que sobra ao humano após ter atravessado a fronteira do desconhecido. Tal objeto ser usado na abertura do espetáculo, com seu sorriso irônico e ar contemplativo voltado para a plateia, reforçaria o conhecimento da efemeridade da vida, não fosse estar posicionado no mar, local tradicionalmente associado à odisseia humana da descoberta de si. Dessa forma, a plateia entra em contato imediato com a angústia da efemeridade que marca sua fugaz identidade.
Após a entrada de Gala, marcada pela agitação coreografada, a personagem se comunica por um telefone com Sancho, sujeito para quem relata os causos que marcam suas diversas inquietações. Uma de suas primeiras falas, sinalizando que “Beckett não está mais aqui”, marca um rompimento, uma libertação para a personagem e para Gerald, cuja crítica tradicional parece não conseguir desassociar os diretores. Após essa abertura, o público acompanha as chamadas telefônicas, as confissões e desejos da personagem nos sessenta minutos que compõem o espetáculo. Todos os acontecimentos ocorrem apenas naquele momento, sem sabermos o que ocorreu para a personagem estar à deriva e o público se sente sempre na iminência de algo acontecer, sem ter um horizonte para saber o quê.
Tal jogo temporal desponta, ao final do espetáculo, quando Gala atravessa o caminho do ser humano em busca de sua libertação, isto é, sua transcendência, ocorrendo um paralelo com a iluminação do crânio do início do espetáculo. Seria ele um prenúncio do que acontecerá com a personagem? Ou com o público? Seria ele Beckett? Um mensageiro da morte? O reforço da condição humana? Independentemente do que seja, ainda que a peça crie diálogos divertidos, irônicos e um texto bem planejado, busca apontar um caminho: a única saída apresentada para a fuga da esmagadora aflição da vida é a transcendência, seja ela a morte ou a abdução alienígena.
Thomas consegue, nesse trabalho, moldar a essência afetiva, política e social do mundo pós-pandêmico – a peça ocorre, inclusive, após esse período – em um ritmo simples, cuja passagem de tempo é marcada por um tiquetaquear de iluminação e de som, das chamadas telefônicas, direcionados com elegância e precisão, o que torna a peça uma obra de arte em todos os sentidos possíveis.
A cenografia, assinada por Casa Malagueta, Karen Luizi e Rafael Dias, é composta por um mar profundamente azul, feito de plástico e um barco pela metade no meio do cenário que contém um telefone vermelho. É o único elemento fixo em contraste à impermanente personagem. A iluminação cênica, feita por Wagner Pinto, é deslumbrante. Ele transforma o palco em uma aquarela, criando uma atmosfera fluida, dada as constantes alternâncias de cor e foco de luz. Além disso, é capaz de realçar cada detalhe do texto e da personagem, gerando um deleite para os olhos.
A sonoplastia de Ale Martins, por sua vez, acolhe a audiência e a faz imergir no mar do espetáculo, ora aproximando a plateia dos acontecimentos da cena, ora delimitando a separação deles. Os efeitos sonoros conduzem e refletem o texto em todos os momentos, conferindo e demarcando o ritmo das falas e, como supracitado, marcando a temporalidade da peça.
A personagem Gala, solitária no meio do nada, revela toda sua desolação, incertezas, visões políticas. É alguém que busca, sobretudo, um sentido para as coisas e não encontra. Tais sentimentos vão além do que é a autorresponsabilidade sobre a própria vida, lugar comum que o teatro já deveria ter ultrapassado. Gerald lança sua personagem para além desse lugar, pois questiona: o que vem depois da responsabilidade sobre a própria vida em uma sociedade com demandas e paradoxos irreconciliáveis?
Gala é enérgica e vívida, interpretada perfeitamente por Fabiana Gugli, escolha ideal para unir o cômico e o trágico, que sofre pela ausência da referência humana. Seus gestos e movimentos extravagantes, clara representação de uma personagem afoita, salientam a qualidade de sua expressão corporal e domínio na arte do uso do espaço cênico. Não apenas isso, mas suas nuances vocais carregam diversas emoções, por mais oscilantes que sejam.
Sancho, no que lhe diz respeito, é um personagem extracênico e, ainda que o público não escute suas falas, é possível pressupor seus traços. A hierarquia dramática o insere em uma posição inferior à Gala, uma vez que o gênero monólogo exige que o ponto de vista narrado seja o dela, e o resume a alguém que permite um novo contorno de interpretação.
A escolha do nome do personagem permite uma leitura metonímica de Gala como Dom Quixote, popular personagem de Miguel de Cervantes, conhecido por ser louco nas ações, mas racional nos pensamentos, um reforço de que a personagem de Gerald não é desse mundo. Essa lógica prepondera por todo o espetáculo e indica ser uma de suas molas propulsoras do discurso: todas as emoções são levadas fisicamente ao extremo, mas as falas revelam agudez de raciocínio. Narrativamente, a plateia presencia uma personagem que surge no meio do nada, questiona diversos aspectos da vida e, quando está prestes a colapsar, alcança a transcendência.
A troca entre as esferas discursivas e narrativas reforçam a dualidade da personagem, em que se cria um retrato complexo do próprio espectador, pois o tom prevalecente do absurdo reforça a angústia. A montagem trabalha um outro tipo de “riso de nervoso”, não compreendido como aquele que surge em situações de tensão emocional, mas aquele localizado no cerne da identificação, de modo que Thomas não vê mais saída para nosso mundo, a racionalidade e a velocidade dos acontecimentos nos envolvem e nos afogam, então a única saída é o absurdo: a transcendência, ainda que não se saiba ao certo qual é ela.
Por fim, Gerald Thomas, com este trabalho, nos leva a um profundo estado de reflexão sobre a aflição da vida e a necessidade de transcendência em meio à efemeridade, desafiando-nos a explorar o absurdo como uma possível saída.
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