A peça “Guará Vermelha”, da Cia do Tijolo, baseada no livro “O voo da Guará Vermelha” da autora Maria Valéria Rezende, foi apresentada no SESC Avenida Paulista do final de setembro até o começo de novembro. A peça tem o cuidado de adaptar com uma qualidade excepcional a história do casal Irene (Karen Menatti) e Rosálio (Rodrigo Mercadante), invisibilizado socialmente, com tanta sensibilidade que relembra o seguinte trecho do livro:
[…] me mostrou que uma história, se for contada com jeito, palavra atrás de palavra, o corpo todo acompanhando, de modo que o outro escute inteiro com a cabeça, o coração e as tripas, pode até valer dinheiro, e vale mais que dinheiro
(REZENDE, Maria Valéria. O voo da Guará Vermelha. p. 69)
O modo de encenar essa história, acompanhado das músicas, dos momentos de interação com o público, a disposição do palco em semi-arena, além da estética do próprio grupo de consolidar o ideal freiriano é encantador, elevando o próprio teatro no encontro com ele mesmo. A peça apresenta alguns problemas técnicos e de ordem temporal, mas a qualidade artística avassaladora se sobrepõe a eles.
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A personagem principal da trama é Rosálio, um pedreiro que foge do interior em busca de melhores condições de vida, mas é enganado e começa a trabalhar em situação análoga à escravidão. Após conseguir fugir, consegue o emprego em uma obra, ponto de partida para a história que o público vê. Desde criança, sempre foi fascinado com o contar histórias, algo que o incentiva a aprender a ler e escrever, mas devido a condições externas a ele é sempre privado disso. Ainda que tenha enfrentado muitos problemas na vida, sua característica principal é o olhar inocente e ingênuo diante da vida, tendo uma fé inabalável na humanidade e na capacidade de enxergar o sublime no grotesco.
Por sua vez, Irene é uma garota de programa cuja sorte não lhe sorri desde criança, sendo expulsa de casa após perder seu responsável, ter um amor nunca concretizado por Romualdo (personagem que nunca surge à cena ou no livro) e ter um filho que não pode cuidar e por isso deixa aos cuidados de uma idosa. Ao contrário de Rosálio, perdeu a esperança na vida e as suas primeiras cenas são queixosas, desesperançosas, esperando apenas a AIDS lhe extrair o último sopro de vida.
Devido à obra do destino, em uma das noites que Rosálio sai do serviço, se deita com ela pensando que era um convite, logo em seguida descobrindo que ela era uma garota de programa e revelando que não tinha dinheiro para pagar. Após a briga e o reforço dessas personalidades tão complementares, eles começam a se ver continuamente.
Rosálio carrega na bolsa dois livros muito simbólicos e importantes para a trama (além da beleza poética que é um analfabeto ser apaixonado por livros), Dom Quixote e As Mil e Uma Noites. No primeiro, encontra-se um herói tão apaixonado pelo mundo da imaginação que passa a viver em função dela, além de possuir um coração bom e generoso. No segundo livro, encontramos Šahräzäd (Sherazade), mulher corajosa que todas as noites cria histórias inacabadas para embalar o sultão e afastar diariamente a própria morte e a das mulheres de seu povoado, como se a palavra pudesse prolongar, dia a dia, a vida. Algo similar ocorre com Rosálio e Irene, pois no momento mais importante da narrativa é que o encontro entre eles passa a ser motivado pelo ato do aprender, pois ela começa a ensinar Rosálio, de modo que realiza seu sonho de infância de ser professora e ele realiza o dele de aprender a ler. Diante da exposição das vulnerabilidades, da realização dos desejos, da descoberta de si e do outro e do contato respeitoso entre os corpos, eles passam a viver no plano da imaginação e da memória, onde tudo é possível, noite a noite, e podem se esquecer temporariamente dos pesados sacos de cimento e da apropriação de seus corpos por terceiros.
A complementariedade entre os personagens passa a ser observada e ecoar em quase toda a estrutura cênica da peça. O próprio espaço, embora delimitado em semi-arena, não é rígido para o público, que inicia no centro dele embalado ao som de “Dona Maria Valéria, me escuta / só por um segundo / as coisas que a gente põe no papel / será que modificam o mundo?”, além de em dado momento, mais ao centro da peça, ser convidado a dançar lentamente e abraçado no palco. Quanto ao lugar dramático, tampouco é fixo também, à exceção de uma lona que é pintada com letras em vermelho enquanto Rosálio aprende a ler. O cenário, assim como a iluminação, vai se fazendo, desfazendo e refazendo conforme a necessidade narrativa, sendo múltiplos e fluidos, além de ser composto por diversos materiais. Os figurinos são macacões cinzas, cada qual com o nome de um dos capítulos do livro, e em dado momento da peça, o elenco comenta suas percepções sobre o capítulo do livro que vestem a partir daquilo que tocou em sua subjetividade.
As músicas do espetáculo compostas por Fernanda Guedes e Jonathan Silva são magnificas e utilizadas ao longo das cenas de maneira deslumbrante. Às vezes é muito próxima de ritmos típicos de cidade de interior, marcadas pelo violão e triângulos, em outros momentos despersonalizam os personagens e dá a eles uma forma musical. As performances musicais expressas em canto individual, coral e as coreografias são encantadoras.
Diante do exposto, somos enfáticos ao afirmar que “Guará Vermelha” é uma experiência teatral inspiradora. A plasticidade do espaço cênico, a versatilidade do cenário e figurinos, aliados às magníficas composições musicais, contribuem para uma experiência teatral que transcende o palco, tornando-se uma reflexão poética sobre a resiliência humana e a capacidade de encontrar beleza no grotesco, reafirmando o valor intrínseco de uma história bem contada.
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