Não é curioso como as cenas mais inesquecíveis podem ser tão triviais? Vida, morte, doença; no livro de não-ficção “Uma oitava acima”, Bruna Lauer conta como sua vida mudou com a luta contra dois graves problemas de saúde, a separação e a perda de um ente querido, convidando o leitor nessa jornada para longe desse cruel mono-tom. Para o aniversário de um ano de lançamento, a gente da Woo foi conferir um pouco mais sobre essa história e deixamos nossas impressões na resenha abaixo.
Era uma tarde de janeiro
“Não conseguia identificar se estava frio ou quente, pois o quarto climatizado do hospital fazia com que todos os dias fossem iguais.
Uma oitava acima, p. 9
Às vezes, alguém que chegava comentava sobre o sol ou a chuva, mas eu estava tão desnorteada que não registrava nada daquilo. Só conseguia perceber a falta de cor daquele lugar. Apenas sentia o cheiro asséptico do ambiente hospitalar.”
Quando se tem diante de si um trabalho de não-ficção, valorar a percepção pessoal no que funciona e o que não é bem diferente de um romance, por exemplo. Isso não quer dizer que nessas histórias não exista uma forma de se narrar e até se possa recorrer a outros gêneros; na verdade, esses elementos podem assumir papéis diferentes, até subverter tudo o que você já imaginava a respeito.
Deixando a parte mais técnica de lado — ou tentando! — logo de cara Uma oitava acima conquista por ter uma narradora muito carismática: a escrita é leve, não pedante, a história é um buraco de coelho que só vai cada vez mais fundo e da qual é de fato difícil de largar depois da primeira sentada para ler, além de transmitir desde o início uma intimidade que só é possível porque o texto também carrega marcas de oralidade, corroborando a sensação de conversa.
Se por um lado, para o público geral, isso já é a receita completa — “o que mais se pode exigir?” — que não se perca de vista que o conteúdo vai de mãos dadas com o molde; as ilustrações de Kenia Nattrodt são a faísca que talvez falte para ligar os pontos entre os leitores: essa é uma narrativa de abismo, tanto pelo tema quanto pelas escolhas de escrita.
Soma-se a isso que Lauer não apenas narra, mas faz recortes que simulam um pouco a experiência da própria consciência e, não por acaso, com todas as diferenças de contexto e narrador, isso talvez faça você lembrar de livros de ficção como “Druam“, “O rio entre nós” ou “Os moedeiros falsos“. O leitor encontra ilustrações, textos e trechos de música, de autoria própria ou não, que reconstroem a linha do tempo labiríntica, mas que aos poucos se desvela.
E, por reconstruir a sua própria narrativa, quem lê é cúmplice das descobertas e reflexões da autora-narradora, cujo principal mérito é saber quando avançar e quando retroceder no tempo, bem como fechar uma história nada fácil, mas que é sua, sem que, tão jovem e com uma longa vida pela frente, a conclusão seja piegas ou simplesmente romântica; o que é um crime terrível com o próprio texto entre autores novos e experientes de não-ficção, mas Bruna soube manejar bem.
Nessa solução encontrada, que é também parte do conteúdo, há uma pequena armadilha: se o estilo expõe o lado mais humano, sincero e que permite ser frágil, também há algum ruído que pode ser sentido nos momentos mais “líricos” e reflexivos do livro, dizendo respeito a se apoiar em discursos em giro — presentes na sociedade — e que, por consequência, perdem um pouco da potência. Isso não chega a ser um problema, pensando em como a autora tem uma ótima história e, de forma global, a encadeia bem, mas foram alguns esses momentos em que, durante a leitura, recobrei a consciência para fora da narrativa.
Pode-se dizer sem medo que “Uma oitava acima” é um convite a todos (re)conhecerem lados seus que talvez tenham ficado apagados pela aspereza da rotina. Devo repetir: não é fácil contar uma história tão delicada — sobretudo quando a melodia não dá sinais de baixar o tom — mas mais difícil ainda é trazer personalidade para não ficção para longe de lugares comuns; como autora e como ser humano, não tem como não virar a última página e não desejar conhecer (e dar uma braço em) Bruna Lauer.
Particularmente, este quem vos fala não considerou justo em um primeiro momento dar uma nota para um livro de não ficção, afinal, muito mais acostumado com o inverso (e os vícios de romance), poderia se entender isso como uma valoração ou “validação” da história, que também é pessoal, da autora — veja: as técnicas de escrita de “Vermelho, branco e sangue azul” são muito diferentes de um livro de relatos, ou diário, por exemplo. Porém, por fim, acredito que seria injusto com a própria autora, não reconhecer também o valor lírico na sua obra.
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