“Roud 6” ou “Squid Game” estreou há pouco na Netflix e, como a grande febre do momento, algumas discussões interessantes voltaram a tona. Para além da explosão da popularidade de séries coreanas nas plataformas de streaming, essa outra roupagem para as produções tão populares do extremo oriente no estilo Battle Royale retoma algumas velhas perguntas sobre violência na mídia. Afinal: por que as narrativas de violência apelam ao nosso imaginário e se podemos pensar em eventuais “excessos” como pura coincidência.
Um pouco de história
É possível que uma das primeiras respostas envolva justamente a catarse, essa ideia que se tem que é possível expurgar os sentimentos ruins através do drama, como um próprio papel, natural, dos sonhos quando se dorme. Deve-se fazer uma ressalva quanto a esse conceito, original de Aristóteles, pois o próprio autor não descreve precisamente o que é catarse, mas sendo um tópico de análise literária antiga, não é de se estranhar que seja algo feito conscientemente e bem estudado — em outras palavras, é sabido há muito quais são as formas de provocar emoções fortes no público, entre elas a violência.
Pode ser anacrônico fazer certas comparações sem um cuidado com o contexto, por isso é mais adequado compreender também a obra como um atravessamento de sua época. Em “Édipo Rei”, a cena em que Édipo arranca os próprios olhos e sua mãe/esposa se matam só vai a conhecimento do espectador através do coro, o mesmo em “Medeia”, que o momento assassinato dos próprios filhos pela protagonista fica subentendido pelos gritos de escanteio. Ainda retornando à temática da poética de Aristóteles, há a crítica sobre obras que a “tragédia” não estaria ligada às ações de quem a sofre, ou seja, um homem ter a casa roubada e os familiares mortos quando estava cuidando de sua vida é um exemplo do que não fazer como fim, pois só faz uso de algo chocante sem de fato amarrar uma trama.
Indo ao contemporâneo e sendo mais técnico, a humanidade teria passado por uma transição de foco do “ser” para “ter” e então ao “parecer” e, da mesma forma que nas configurações atuais de sociedade tudo vira produto, seria possível estender essa interpretação aos valores e às relações com os outros, ou seja: em um comercial de margarina não se vende apenas o produto, mas momentos felizes em família, sentimentos. Colocando em outros termos, nesse mundo permeado por imagens tudo vira espetáculo, como a pobreza e violência exploradas em um programa dominical.
Toda a vida das sociedades nas quais reinam as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de espetáculos.
Guy Debord, A Sociedade do Espetáculo (1967).
Uma forma fácil de comover
O motivo pelo qual um assassinato na vida real causa choque e na telinha um espetáculo tem a ver com a capacidade humana de discernir o que é ou não um perigo real. Contudo, em um contexto em que os indivíduos estão cada vez mais expostos à violência desde cedo, resta algo que ainda é provocativo?
Uma das primeiras obras violentas da animação japonesa a chegar ao mainstream é “Elfen Lied”. Esse anime que já foi mencionado outras vezes aqui na Woo talvez seja uma das experiências iniciais de muitos com a produção oriental. Em breve resumo, Lucy é uma das Dioniclus, uma raça de humanos com poderes psíquicos desenvolvidos e com alto potencial de uso como armas de guerra e, em razão disso, é encarcerada e torturada em pesquisas sem qualquer ética científica até o dia em que consegue escapar do laboratório.
Desde os segundos inaugurais até o fim, toda vez que Lucy entra em seu modo furioso e deixa um rastro de destruição por onde passa toca a canção tema, “Lilium”, um canto gregoriano imitativo, todo em latim. Não precisa ser dito que essa mistura causa um certo estranhamento, um local de não pertencimento, afinal, como um louvor cristão pode ser colocado em meio a cenas tão brutais? Apesar do uso inteligente da música para preludiar o fim, a repetição constante dessas cenas alinhadas a uma violência que não caminha a lugar algum não contribuem para colocar Elfen Lied, senão na nostalgia, como um trabalho cujo maior mérito seja senão chocar — sem propósito.
Não faltam exemplos dentro do próprio universo dos animes para desmentir esse tipo de construção: “Akira”, “Mahou Shoujo Madoka Magica” ou mesmo “Re:Zero” com suas devidas individualidades não usam o tema desse texto como um simples pretexto de suscitar “emoções fortes”. No último citado, o protagonista Subaru atinge a completa exaustão emocional ao ter que reviver vez atrás de outra a morte de companheiros queridos, tudo porque sua história não prossegue no tempo, literalmente, até que ele arrume as coisas como deve — o que muitas vezes envolve ter que rever o assassinato de uma pessoa amada em centenas de tentativas até a reversão.
Retomando à chamada, Round 6 possui uma premissa simples e apresenta aos poucos os dados desse mundo e as regras do jogo de sobrevivência. Se as cenas logo se revelam extremamente gráficas, é no segundo episódio que as motivações ficam um pouco mais claras. Como em um microcosmo da vida real, a série faz questão de destacar o desespero desses indivíduos em ter o que comer e/ou dar uma vida digna para seus familiares, por exemplo, não poupando cenas que mostrem a situação de crise do país e desigualdade social; abdicando de seu corpo (força de trabalho) e mente (princípios) pelo dinheiro, nem que isso custe — literalmente — passar por cima e pisar em outros.
E se formos embora? Será diferente por um acaso? A vida lá fora é um inferno.
Trecho destacado de Round 6. Tradução/Reprodução: Netflix.
Com as devidas críticas e ressalvas que devem ser feitas, Round 6 nesse ponto acerta e é sublime em não enunciar um escândalo social, mas apresentá-lo e passar a bola para o telespectador decidir a respeito, não sendo um outro caso do já citado “violência somente pelo choque”. Se os tópicos da distopia moderna lá atrás envolviam tanto a hipervigilância, ainda muito relevante atualmente, hoje em dia as obras talvez se interessem mais e mais na espetacularização da vida sendo levada às últimas consequências. Duvida? Basta olhar para alguns dos últimos grandes sucessos de livros jovem adulto/Y.A.: Jogos Vorazes, Maze Runner, A Seleção.
Lá fora é uma distopia
Há algumas ideias comuns que talvez tragam luzes importantes à discussão; entre elas, vez ou outra o associar dos videogames como responsáveis por trás de um crime e até a letargia social. O que seria isso? No primeiro caso seria equacionar a vida imitando a arte ao máximo, enquanto no segundo a pura banalização da violência. Em ambas situações parece um reducionismo ignorar tantos outros fatores que levam a essas questões e não considerar o caso a caso.
Simplificadamente, são pontos um tanto mais complicados por serem ao mesmo tempo estruturais e estruturantes, ou seja, ao passo que fazem parte de um sistema maior, também ajudam a pintar um quadro desse momento histórico e daquilo que está por vir — a história de que o passado influencia no futuro. Nesses momentos, é importante fazer valer do poder de crítica (e autocrítica) em pôr em questão de como as coisas são representadas e se a violência, tal como o sexo, não está sendo utilizada apenas como uma mercadoria, sem conteúdo algum de fato.
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