Ter uma história na cabeça é algo razoavelmente fácil. Tirar essa história da cabeça e passá-la para o papel já é um desafio e tanto. É necessário dominar técnicas narrativas, construção de roteiro, elaboração de personagens e desenvolvimento de diálogos. Em se tratando de histórias em quadrinhos, ainda é necessário saber decupar o roteiro de modo a transmitir o ritmo da trama nos quadros e páginas. Complexo, não? Pois se seguir todas essas regras já parece difícil, quebrá-las é uma tarefa para poucos.
E quebrar as regras é algo que vemos em “GNUT”, uma História em Quadrinhos que já nasceu ambiciosa, sendo parte de um projeto que envolve o livro impresso aqui resenhado, uma websérie e um (pasmem!) game. Para viabilizar tamanha ousadia, o autor Paulo Crumbim iniciou e desenvolveu a websérie até que ela atingisse uma maturidade para ganhar o livro impresso. Este conseguiu ser produzido graças ao financiamento coletivo pelo Catarse. Além dos benefícios aos apoiadores no crowdfunding, este álbum também pode ser encontrado à venda em lojas como a Ugra Press.
Mas o que tem de tão interessante assim em “GNUT”? A grande sacada inovadora desta HQ é que os diálogos, justamente o elemento fundamental da linguagem para a compreensão da história, não existem. Ou melhor, existem sim, só que os diálogos de cada criatura extraterrestre são “escritos” em seus respectivos idiomas! Na verdade, são pictogramas que não sugerem nada em especial, a não ser quando os tamanhos dos balões de fala são alterados de acordo com a entonação de quem fala.
Sinceramente, esta não é a primeira HQ sem diálogos, de fato existem outros bons trabalhos por aí se utilizando desta técnica narrativa ousada. Muitos mangás inclusive são predominantemente assim. A questão é que em grande parte desses trabalhos os desenhos acabam por compensar a ausência de falas, pois são compostos de imagens, cenários, objetos e personagens concretos. O diferencial no projeto de Paulo Crumbim é que tudo na história é abstrato. Os personagens são seres interplanetários. Os cenários são compostos de formas surreais e multicoloridas. Os objetos de cena são ainda mais fantásticos. A única conexão existente com a nossa linguagem de formas, signos e símbolos é um prisma que tem poderes especiais.
Com toda essa abstração, ler “GNUT” não é aquele exercício fluído que alguns mangás proporcionam. Uma vez que tudo o que vemos na página se mostra incomum à nossa linguagem, é necessário observar cada quadro e cada página com muita atenção. Não se trata apenas de cada leitor desenvolver uma interpretação particular, pois na verdade cada um vai criando sua própria história à medida em que vai interpretando os desenhos. Leitores mais curiosos ainda vão tentar “brincar de detetive” para enxergar alguma lógica entre os pictogramas e as expressões faciais dos personagens, a relação entre as cores e os estados emocionais e outros elementos que cada um consiga detectar.
Apenas ler sobre essa proposta de HQ experimental sem diálogos e sem elementos concretos pode sugerir que não existe um roteiro, já que tudo vai acontecendo na mente do leitor. A questão é que sim, existe um roteiro essencial que conduz uma trama subjetiva. Paulo Crumbim explica que sempre se fascinou com o fato de que um escritor se esmera em suas palavras, mas ao final sempre pode ser interpretado de formas diferentes pelos leitores, fugindo da intenção original. Enquanto muitos escritores tentam evitar ao máximo essa ocorrência, em GNUT ela é intencionalmente explorada. Reforçando esse roteiro essencial temos quadros e páginas bem diagramados, planos e enquadramentos que demonstram o domínio da narrativa (bem como de teorias de comunicação e semiótica) e proporcionam ritmo à história.
Complementando todo esse pacote, a colorização da HQ é espetacular. Sempre utilizando tonalidades intensas e contrastantes, cada página é um show visual de cores e formas. Aliás, a utilização de formas orgânicas (arredondadas) tanto para personagens quanto para cenários, parece deixar tudo mais “fofinho”, algo que consegue criar uma sinergia fácil com o leitor diante de tantas abstrações.
Como foi dito no início, “GNUT” é um projeto complexo que envolve diversas mídias. Para adquirir o álbum impresso, é fácil encontra-lo na UgraPress e para acompanhar as webcomics, basta visitar o site do projeto. Aqui temos um kit formado por um pequeno prólogo de 12 páginas, o álbum principal com 156 páginas e um terceiro volume com um making of do projeto.
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