Em 2014, a fundação CSN realizou a segunda edição de um programa de incentivo a produtores independentes de documentários brasileiros “Histórias Que Ficam”. Durando até o segundo semestre de 2016, o projeto contou com inscrições de todo território nacional, com quatro sendo selecionadas para produção após a primeira etapa do projeto. Vinda do Ceará, uma das ideias vencedoras era o documentário, dirigido por Pedro Rocha, com o nome “Direitos Humanos Para Bandidos”, que depois foi renomeado para o mais sútil “Corpo Delito”, que começou a ter seu lançamento em 2017.
Visando combater o dizer comum de “bandido bom é bandido morto”, a produção documenta a história de Ivan Silva, um homem que, após oito anos preso, é solto em liberdade condicional, tendo sua locomoção limitada (e vigiada) pelo uso de uma tornozeleira eletrônica. Desse modo, seu dia a dia é registrado, assim como o de sua família e amigos, todos habitantes da Favela dos Índios, em Fortaleza.
Aparentemente, a intenção original de Rocha era fazer um documentário com um formato mais tradicional, que incluía pesquisas sociológicas e narração em off – como visto na descrição do projeto no site do programa – porém, a produção final, graças às novas escolhas do diretor, é muito mais pessoal e personalizada, com um estilo que beira a ficção.
Abandonando os clichês esperados do gênero, a equipe por trás de “Corpo Delito” não tem participação direta na narrativa, ao invés disso se contenta em mostrar, através de planos longos e estáticos, a realidade nua e crua da situação. Mas isso não significa que houve limitações na direção, que utiliza a repetição dos movimentos quase motorizados dos homens que trabalham com Ivan para passar a sensação de rotina, ou, de modo mais notável, passa a ideia de confinamento através do uso de somente planos internos durante a primeira metade do longa, o que chega a provocar estranheza quando é finalmente mostrado um plano externo e aberto.
Essa estética, na qual tudo ocorre tão naturalmente que não parece nem haver uma equipe de filmagem, provoca uma imersão na vida e no ambiente da favela. O documentário, porém, tem alguns aspectos que ocasionalmente quebram essa sensação, como enquadramentos com posicionamento de “atores” que parecem pré-programados e algumas pessoas que parecem bem desconfortáveis em frente às câmeras. Felizmente, o protagonista e sua família não fazem parte desse grupo, o que deixa ainda mais certeira a decisão de, em cenas de diálogos, manter o plano quase sempre em Ivan, priorizando a sua reação ao que os outros dizem para ele.
O rumo que a história toma é outro aspecto conflitante. Com o passar do filme, Ivan se torna pouco mais que um personagem secundário e o foco da produção se vira para a vida de outros habitantes do local. Além disso, o documentário dá uma visão limitada de seu protagonista, principalmente por não revelar qual foi o crime que ele cometeu e nem mostrar certas ocorrências, como seus momentos de rebeldia no trabalho, descritos pela psicóloga e pela agente responsável por sua reabilitação. Essas omissões provavelmente podem ser culpadas pela duração de apenas 70 minutos, algo que foi imposto aos criadores pelo programa “Histórias Que Ficam”.
Mas onde “Corpo Delito” erra em fazer um estudo de personagem, por assim dizer, ele acerta na descrição de um estilo de vida, quase como uma pesquisa antropológica. Se seu objetivo, como sugerido pela proposta inicial, era humanizar e mostrar a figura do “bandido” sob uma perspectiva diferente, então não só ele foi bem sucedido, como vai além e representa toda uma realidade que grande parte do público dos cinemas não conhece ou prefere ignorar.
No começo do filme, Ivan diz “nessa vida, ou é cadeia, ou cadeira de rodas ou cemitério”, o que é uma afirmação bem impactante por si só, mas que causa ainda mais efeito quando é comprovada ao longo da produção. O documentário, por fim, pode não ser exatamente aquilo que está sendo vendido, mas é ainda assim uma experiência interessante e recomendada.
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