A peça “Medusa in.conSerto”, produzida pela união da Cia. Les Commediens Tropicales com o Quarteto à deriva, consegue trazer à cena uma releitura do clássico mito da Medusa, de uma maneira pulsante, cômica e com um tom afrontoso. A montagem explora o feminino no espaço social e ensaia os lugares em que ele é colocado.
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No mito, a personagem Medusa é estuprada pelo deus Poseidon e assassinada por Perseu, que entrega a cabeça do monstro para a deusa Atena. Com a cabeça rodeada de serpentes, seus olhos cintilantes eram penetrantes, de modo a transformar em pedra quem cruzasse o olhar com ela, sendo evitada por deuses e mortais.
Partindo das linhas de Ovídio em Metamorfoses, a Cia. Les Commediens Tropicales subvertem o mito tradicional, pois a inclusão dessa narrativa surge no começo da peça e se desdobra em algumas outras cenas fragmentadas, constantemente confrontando o mito com os dias atuais e tendo como eixo o direito feminino ao existir. A primeira cena, por exemplo, traz Perseu convertido em Dirceu após o contato com a Medusa, bradando, espacial e religiosamente, a palavra dela, discutindo a presença da mulher e a relação da sociedade com ela. Em seguida, o público é conduzido para o lugar central da encenação, onde a narrativa supracitada é sumarizada, apenas para dar um chão comum de conhecimento à plateia sobre o mito, para que de fato a peça se inicie.
O grupo adere a estética do teatro de rua, de modo que a primeira cena se inicia em uma parte do Centro Cultural SP, para em seguida ser conduzida para a sala “Espaço Missão”, onde predomina. Essa sala tinha no centro diversas esculturas gregas, assim como a presença de escadas dobráveis e dois telões. Não havia cadeiras para sentar, a proposta era que o público se movesse pelo ambiente. Esses elementos acrescentam uma camada audiovisual e imersiva para a peça, similar a uma balada de galpão – afinal a peça é um concerto – que adquire contornos teatrais.
Cada momento traz uma sonoplastia única, pois é uma peça-show. Dessa forma, foge-se da estrutura convencional da relação teatro e sonoplastia já fixada do teatro musical e forja-se uma estrutura inédita, alta e vibrante, com som de rock pesado não ao fundo, mas no contorno de toda a vivência teatral, onde a banda circula pelo local em uma estrutura móvel. Medusa in.conSerto é, em todos os sentidos da palavra, um espetáculo.
Diante do jogo sonoro das palavras concerto e conserto, o concerto é musical, com música de qualidade, como já expomos. Nos interessa mais o conserto com s do verbo, cujas definições do verbete no dicionário são:
1. Ato ou efeito de reparar ou recompor algo que esteja rasgado, quebrado, descolado, deteriorado etc.
2. Correção, reforma ou reformulação de algo que apresenta uma falha ou defeito, que foi malfeito, que necessita de modificação, ajuste, remendo.
A partir de uma história de abuso, traição, assassinato e exploração, portanto brutal da experiência feminina, colocar Medusa no conserto significa utilizar esse lugar como uma forma de corrigir a injustiça da imposição patriarcal, ocidental e oriental, que se tem feito com o sujeito mulher através dos séculos. Nesse sentido, Medusa dita a regra, o que explica a cena inicial e toda a estrutura da montagem, de modo que toda a composição do espetáculo é constituída de uma riqueza criativa extraordinária, sintetizada no símbolo adotado e distribuído em adesivos:
O uso do cenário pelos personagens possui três níveis: o humano, onde fica o público e as Medusas caminhando pelo espaço, o divino, representado pelas escadas em que apenas os deuses Atena e Poseidon conversam sentados, e um externo, acima do divino, para onde Medusa se desloca nos instantes finais da peça. Esse lugar físico é também social, constantemente discutido e confrontado no debate entre os personagens.
Acerca dessa categoria, o elenco é composto por Perseu, Atena, Poseidon e mais de uma intérprete simultânea de Medusa, cuja pluralidade de corpos e tons de pele é necessária para aquilo que está sendo exposto. A hierarquia dramática é representada pelo uso do espaço, conforme apresentamos acima, mas as relações são organizadas de modo hostil entre os personagens, exceto entre Perseu e Atena, que não possuem uma interação significativa.
O ponto de vista é o de Medusa, uma escolha disruptiva dos roteiristas Carlos Canhameiro e Michele Navarro, pois o mito da personagem vangloria sempre Perseu, enquanto a mulher-monstro é integrada na tradição como algo a ser combatido e derrotado.
Diante dessa escolha, o rompimento com as narrativas consolidadas agregada a estética já apresentada se desenvolve em duas proposições: a) o roteiro salienta em diversos momentos como Medusa foi abandonada por Poseidon e Atena, e no diálogo entre os deuses fica explícito que as regras deles não se aplicam ao mundo humano, retirando deles a responsabilidade sobre a sensação de culpa que a personagem precisa carregar sozinha. Assim, sua transformação no temido monstro vira objeto de identificação e estranhamento do público por e com seu olhar, que mistura as ordens de si com o outro com o qual ela interage brevemente antes de petrifica-lo e revelar o que propriamente precisa ser morto; e b) dar o protagonismo à personagem permite que ela dite as regras sociais conforme seus termos, como ela diz em determinado momento da peça: “Quem define as regras da representação é quem define quem deve existir”.
Todos esses fatores contribuem para a estrutura feminista que emerge da peça, pois homens e mulheres precisam se movimentar, ao contrário das estátuas de pedra que cruzam o olhar da Medusa, pois se mover significa explorar uma história já colocada a partir de novos ângulos, uma vez que não há um lugar para estabelecer o discurso, não há nada fixo. Ao contrário, condensa-se no mito, matéria tradicionalmente moldável conforme as necessidades da dramaturgia, a possibilidade do tornar-se mulher, independentemente de como o mundo a aloque socialmente. Em termos mais precisos, é uma peça de um conjunto de mulheres para mulheres.
Do meio para o final da peça, a partir da libertação de Medusa das amarras sociais, é inevitável lembrar das palavras de Hélène Cixous:
Eu sou para você o que você quer que eu seja no momento em que você me olha de uma maneira que você ainda não me viu: a cada instante.
(CIXOUS, 2022, p. 81)
Por fim, o olhar medusante cujo arrebatamento é mágico e mortífero, torna a apresentação da peça-show um espetáculo do qual não há como não sair transformado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CIXOUS, Hélène. O riso da Medusa. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2022. 116 p.
Verbete “conserto”. Disponível em: <https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=conserto>. Acesso em 1 de setembro de 2023.
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