A “Mutação de Apoteose” é a primeira peça dirigida por uma mulher, Camila Mota, na arena-passarela do Teatro Oficina. O espetáculo de teatro musical foi apresentado pela companhia Teatro Oficina Uzyna Uzona, com dramaturgia de Cafira Zoé, e parte das montagens “Os sertões” e “Odisseia Cacilda”, encenadas pela companhia ao longo de décadas.
A peça é inspirada, sobretudo, no capítulo IV de “A Terra”, da obra “Os sertões”, de Euclides da Cunha, mas a trama não é de fácil assimilação, tendo em vista não recorrer à estrutura tradicional, o que de modo algum é um problema já que é possível perceber os começos e términos de cada cena. O espetáculo começa com a aparição de Euclides da Cunha, e o que se sucede após isso é a história do Brasil, revisitada e revista a partir da lógica do tempo espiralar, pois a premissa básica da peça é a ideia de metamorfose, em uma poética de reconfiguração dessa história e do próprio teatro. Nesse sentido, a peça é, de fato, um acontecimento.
A cenografia é preparada pelos próprios atores durante o desenvolvimento da história e salienta a qualidade de uso do espaço pelo próprio grupo. O palco é similar a uma passarela e o público fica disposto nas plataformas de dois andares, mas diferente do que ocorre em teatros tradicionais, em que os acontecimentos da narrativa se concentram apenas no palco, todo o espaço é utilizado pelo elenco, o que é facilitado pelas escadas, pelos vãos entre os lugares para sentar. Dado as duas áreas do palco, separadas por três relevos, o elenco se divide nos dois extremos, em contato direto com o público, o que propicia uma maior flexibilidade para os atores e o melhor aproveitamento da peça pelo espectador, que de fato não perde nada.
Outro fator que contribui na qualidade da cenografia são os televisores, localizados no meio do palco, que transmitem diversos ângulos da peça e que também servem para mostrar fotografias, pinturas, entrevistas, gravações, o que confere ao espetáculo um caráter multimidiático. Um dos pontos altos do cenário é a utilização do holograma, assim como a qualidade da iluminação, que funciona de modo sublime em cada cena proposta, como a entrada dos orixás, que é muito bem ambientada e respeitosa com a espiritualidade.
Ainda sobre a ambientação, em uma das cenas ela é construída pelo olfato, quando algumas pessoas do elenco entregam folhas de manjericão e transitam com elas pelo espaço, o que promove ainda mais a imersão do espectador com o que está sendo apresentado.
Todos esses aspectos vão esboçando, durante as duas horas e meia da peça, a relação que o elenco tem com o público. Embora algumas pessoas tenham maior ou menor destaque dado o que está sendo proposto, e com isso quero dizer que possuem mais falas, uma parte expressiva do espetáculo é dependente do talentoso coro de atores. É através dele e de seu vínculo com a plateia, separados apenas pelo frágil tecido da ação dramática, que o público é também ator e parte integrante da mutação de apoteose que acontece ali. O grupo do Teatro Oficina funciona, dessa forma, na transposição do regime do limite teatral.
O coro possui uma forte manifestação do ritual apoteótico que está acontecendo. Ele é uma personagem coletiva, respeitando as atuações individuais, que é a projeção mediúnica do mundo divino, cosmológico e terrestre, centrado no Brasil, cuja voz se faz atemporal. Essa manifestação se encontra sobretudo nas músicas uníssonas, bem sincronizadas, o que é um mérito ao trabalho do grupo ao alcançar essa proeza com um elenco tão numeroso.
O musical tem canções compostas por Jards Macalé, Tom Zé, Celso Sim, José Miguel Wisnik, Letícia Coura, Denise Assunção, Arthur Nestrovski, Marília Piraju, Gui Calzavara e Chico César especialmente para a companhia.
Acerca do roteiro de Cafira Zoé, ele revela originalidade e consonância com toda a estética que se propõe. Ainda que a ideia de metamorfose fique um pouco confusa, é presente na peça inteira. Conforme a produção, o texto experimental foi inspirado em um capítulo do livro “Os sertões” de Euclides da Cunha, bem como na montagem do próprio grupo sobre essa obra. “Mutação de apoteose” entrecruza as filosofias vegetais de Emanuele Coccia, a poesia vital de Stella do Patrocínio, as poéticas do refúgio de Dénètem Touam Bona, o pensamento visual afiado de Abdias do Nascimento, as multiespécies ciborgues de Donna Haraway, a força do monstro em Paul Preciado, as cosmovisões indígenas e quilombolas, as dissidências de gênero, a coragem dos poetas, a ancestralidade do Teat(r)o e os diferentes povos que constituem os coros.
Afirmo com certeza e tranquilidade que o teatro e o Brasil nascem e são reformulados ali, algo que o grupo tem consciência, como manifesta em sua música final, e que não há como se despedir do palco ser ter-se transformado e com o desejo de regressar à ele.
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