A pandemia de COVID-19 deixou mais de 700 mil vidas para trás e a retomada gradativa das atividades parece ter lançado esse dado para uma zona da memória coletiva que optou por esquecer esse trauma histórico. Na Educação, houve um imediatismo para sua continuidade, o que embora seja um sinal de que essa área possui relevância social e, portanto, não pode ser interrompida, por outro, a urgência de contiguidade nos meios digitais sem preparação dos e para os professores gerou uma configuração radical em suas vidas e práticas pedagógicas. É a partir desse contexto catastrófico que emerge o espetáculo “Professores online”, do Coletivo Parêntesis de Teatro.
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A peça, cuja direção e dramaturgia é partilhada entre Caio Caldas e Pedro Tancini, é dividida em dois atos. O primeiro é mais longo e ocorre com a projeção de uma reunião online, em que os professores conversam sobre uma apresentação de teatro virtual organizada pela professora de artes para os alunos, até a chegada do novo diretor do Colégio, que impõe o retorno das atividades ao mundo presencial, e a aceitação ou não desse retorno é mediada por um termo de responsabilidade, cuja não-assinatura implica na demissão dos docentes. Após sua saída da reunião, os professores discutem formas e saídas de barrar a decisão do diretor. Os diálogos se sustentam pelo embate e relativização perante a pandemia, em que favoráveis ou contrários ao retorno, os professores colocam suas angústias e trajetórias profissionais e pedagógicas à discussão. O segundo ato, de extensão menor, traz os professores à cena, em que de fato interpretam os personagens da peça da professora de Artes e garante a aparente vitória do diretor, que não esperava uma homenagem para uma professora que já havia falecido devido à COVID, algo que ele explicitamente não queria que ocorresse. Dividida entre a vitória do diretor em trazer os professores para o mundo presencial e a homenagem à professora como mensagem de resistência aos ataques da educação, a peça termina com gosto agridoce.
Tendo em vista uma dramaturgia mista, a espacialidade se constrói da mesma forma. No primeiro ato, em que se usa um projetor que reproduz a aparência de um serviço de comunicação por vídeo em que os cinco professores e o diretor são apresentados, é evidente a contração do espaço doméstico como meio de onde parte o trabalho docente. Percebe-se, diante dos seis ambientes de onde os personagens falam, como o espaço é um dos pilares da condição da educação na pandemia: a qualidade da internet, as facilidades e dificuldades no uso dos aparelhos, a sobrecarga que recai sobre os docentes, bem como a vida privada que passa a se misturar com a profissional. Todas essas condições foram muito bem representadas.
Enquanto a história avança, é revelada que a peça que a professora de Artes conduzia é tematizada acerca da pandemia, de modo que os atores vão aparecendo, aos poucos, e montando uma parte do que vem a ser a cenografia do segundo ato, em que entram propriamente em cena. Aqui, talvez, tenha sido uma escolha não tão interessante, pois divide a atenção do público e condiciona à dúvida: enquanto na tela ocorre um diálogo tenso acerca da assinatura ou não do termo de responsabilidade, no palco físico vai se montando uma mesa, por exemplo, o que pode articular dúvida, ansiedade e tensão, sem nenhuma justificativa aparente.
Ao final do primeiro ato, a cenografia do segundo é no uso do palco como palco, onde os professores encenam a peça escrita pela professora de artes. Há ao lado esquerdo do palco a representação de uma mesa de sala dos professores, com café e bolachas e ao fundo uma nova tela de projeção, que é utilizada para a cena final. A plateia é transformada nos pais dos alunos que vão assistir à peça.
A peça apresenta cinco professores e um diretor, cuja hierarquia dramática estabelecida entre eles é a mesma de uma escola normal. O primor da montagem é a caracterização dos personagens, tanto visualmente como no trabalho de elenco. O texto parte de estereótipos comuns para montá-los, tais como a professora que não sabe mexer em equipamentos tecnológicos, o professor com internet ruim, a professora otimista que se vira como pode, a professora que lida com as demandas de dona de casa, o professor sobrecarregado de atividades. Tendo em vista que todo estereótipo é uma generalização, aqui a construção incide na elaboração de personagens identificáveis, mas que ainda assim tem as suas particularidades, de modo que a estrutura relacional entre eles não é apenas mediada pela relação de trabalho, mas também pelas próprias condições de vida e modos de lidar com a pandemia.
Embora haja uma temporária oposição dos personagens entre si, isso ocorre apenas pela imposição do diretor para o retorno das aulas. A partir dessa imposição começa-se a traçar o perfil dele como oposição aos demais personagens. O diretor, que também parte do estereótipo para sua concepção, é a encarnação do discurso neoliberal e representa as tendências de privatização e suposta modernização, que enxergava as vidas perdidas como ínfimas diante do retorno compulsório ao novo normal, reduzindo todas as causas ali colocadas em sua visão de lucro, positividade tóxica e empreendedorismo.
O segundo ato, com a aparição dos atores no palco, traz uma construção cênica interessante, pois são atores que interpretam professores que interpretam atores. Isso reitera o tom cômico da peça e acrescenta um quê shakespeariano, uma vez que muitas obras do dramaturgo inglês apresentam essa estrutura de uma peça dentro da peça.
A discussão da pandemia de COVID-19 no contexto da peça, destaca-se como uma abordagem crucial para a reflexão e compreensão do impacto profundo desse evento na vida dos educadores. O grupo, ao representar a realidade dos professores em meio à pandemia, dimensiona com maestria as complexidades e desafios enfrentados por esses profissionais. O palco tornou-se, evidentemente, um espaço simbólico para a expressão das vozes dos educadores, permitindo que o público reflita sobre a importância de apoiar e compreender a realidade desses profissionais que desempenham um papel fundamental na formação da sociedade.
Por fim, a peça “Professores online” oferece uma narrativa reflexiva através da comicidade ao trazer para a cena os desafios enfrentados pelos professores durante a pandemia, terminando com uma oportunidade valiosa para a sociedade reconsiderar as políticas educacionais e reconhecer a importância vital do papel do educador. Em um momento em que as artes parecem ter esquecido esse recente trágico período que enfrentamos, o Coletivo Parêntesis conseguiu, como dito na própria peça, realizar “um exercício de memória”, essencial e de extrema importância para as vidas que se foram.
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