O capitalismo se revela um vasto gerador de ilusões e pesadelos. Essa é a realidade que Ani (Mikey Madison) logo descobre em “Anora”, filme laureado com a Palma de Ouro em Cannes neste ano. Ani é Anora, mas a dançarina e stripper rejeita seu nome verdadeiro, possivelmente para não revelar sua origem russa. Afinal, ela nasceu e cresceu nos Estados Unidos, um local que, frequentemente, não tolera as diferenças culturais e os imigrantes — especialmente aqueles desprovidos de recursos financeiros, que não podem se tornar propagandistas das ilusões mencionadas ou proporcionar os sonhos que rapidamente se transformam em pesadelos. Assim como a maioria das pessoas no mundo contemporâneo, ela anseia por uma transformação em sua vida, o que implica deixar seu emprego na boate e abandonar a casa onde reside com a irmã, situada em um subúrbio empobrecido de Nova York. A oportunidade se apresenta quando o jovem bilionário Ivan (Mark Eidelshtein) entra em cena e, após vários encontros, a propõe em casamento.

O matrimônio é consumado, evidentemente, em Las Vegas, dando início a uma jornada dramática, mas também cômica, da protagonista. Sean Baker enche seu filme com humor negro, especialmente quando capangas armênios e um sacerdote aparecem. Não abordarei esses momentos aqui para preservar as piadas, mas vale ressaltar que a comicidade deriva do absurdo das situações geradas por Ivan e sua irresponsabilidade sustentada pela riqueza, que parece dotá-lo do poder de escapar de qualquer consequência. Baker utiliza essa figura para expor os excessos da elite e a forma como ela instrumentaliza as classes mais baixas a seu bel-prazer. Em outras palavras, vidas podem ser devastadas porque um bilionário mimado decidiu brincar com o mundo real, do qual não faz parte e nem conhece.
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“Anora” é, portanto, uma crítica social, mas sem exagerar na dramaticidade. Como mencionado, Baker optou por incluir o humor, talvez para que o espectador não se sinta desamparado ao final da sessão, uma vez que as risadas provocadas pelo roteiro são, em grande parte, nervosas: enquanto o riso é estridente, o choque e a tristeza permanecem em segundo plano. Outro elemento crucial na construção do filme é a crueza das imagens captadas pela câmera do diretor de fotografia Drew Daniels. Com numerosas sequências filmadas em noites frias de Nova York — e possivelmente de maneira “clandestina”, já que pessoas comuns aparecem em restaurantes, nas ruas ou nas boates — há uma busca pelo realismo das imagens, caracterizadas por pouca iluminação, câmera na mão e uma movimentação intensa em planos-sequência. O sol, embora apareça ocasionalmente, serve apenas para iluminar e colorir os rostos dos bilionários, ofuscando, ao mesmo tempo, a visão de Ani.
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É claro que há outras abordagens além das sociais no enredo, como o romance; no entanto, infelizmente, o amor pode não ser viável nessa realidade, assim como a justiça social tão almejada em uma luta de classes que, provavelmente, não terá um desfecho. “Anora” serve, portanto, como um alerta para aqueles que aspiram ao paraíso capitalista que nunca existiu e jamais existirá.
Este filme foi visto durante a 48ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo
Imagem em destaque: Divulgação/ Universal Pictures Brasil

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