O grande desafio de livros, quadrinhos e filmes nacionais que tentam contar histórias cotidianas é fugir de clichês e principalmente de miopias culturais e sociais, haja visto que a dimensão continental do país dificulta o conhecimento amplo de todas as variações culturais. Quando a obra se propõe a um viés de crítica social, o perigo se torna maior ainda. Sobretudo em tempos atuais onde temos presenciado uma triste polarização sócio-política que só faz enfraquecer o povo brasileiro. Porém, felizmente, temos boas exceções nesse contexto e Castanha do Pará vem se apresentar como uma obra primorosa que acerta em todos os aspectos.
O título da graphic novel também é o apelido do personagem principal, um garoto de quinze anos, fruto de uma família disfuncional e oprimido pelo padrasto que o criou. Após acontecimentos trágicos em sua família, Castanha gosta de respirar a liberdade que conquistou pelas ruas da cidade de Belém, circulando pela região do Ver-o-Peso. Circula, desde o despertar até o entardecer, em busca de abrigo, alimento, atenção e diversão. Entre pequenas contravenções e molecagens, vaga sem destino em meio à fartura de alimentos e ao visual exótico do bairro da Cidade Velha. Sempre que pode, tira vantagem de uma situação, mas, no fundo, é apenas um garoto que quer ser percebido em meio à impiedosa multidão.
Trabalhado em duas camadas narrativas, o roteiro mescla a conversa e Iracema, que chamou a polícia para dar queixa do garoto vizinho desaparecido há muitos dias. Ela mora na casa ao lado onde vive a avó de Castanha e supõe conhecer os fatos que levaram o rapaz a fugir de casa. Em depoimento informal ao Capitão Peixoto ela mistura fatos e suposições, compondo uma bela e espontânea interpretação dos acontecimentos. O uso intenso do vocabulário local proporciona uma riqueza aliada à uma naturalidade que envolve o leitor para saber como a história vai se desenrolar. E o ponto de virada para o terceiro ato é realmente impactante!
Em paralelo e tangenciando a primeira linha narrativa, vamos acompanhando o dia-a-dia desse personagem marginalizado por sua condição social e pelo descaso do Estado, bem como os contrastes estéticos e sociais dessa região de Belém, que é apenas mais um cenário nacional das desigualdades do país. Tem como tema a solidão de um menino transfigurado e abandonado na multidão. O garoto é retratado com cabeça de urubu em corpo humano, sugerindo uma rica metáfora visual que remete aos cenários naturais e animais que acabaram sendo suprimidos pelos cenários urbanos. Estranhamente ninguém parece notar a sua aparência, pois todos estão “cegos’’. Ele já faz parte da paisagem.
As metáforas visuais não se limitam unicamente à caracterização de Castanha. Tanto a caracterização antropomórfica de alguns personagens, quanto a personificação de elementos diversos criar contornos bastante subjetivos aos acontecimentos. Seria uma forma de atenuar a triste realidade do rapaz ou uma leitura mental das imaginações e peripécias lúdicas de um jovem que tem seu destino abortado tão cedo por questões sociais pela qual ele não pediu? A pergunta é retórica e a resposta é uma linha tênue entre as possibilidades.
Dentre os elementos que ganham personificações e perspectivas oníricas, a mais rica ficou por conta do futebol, onde o clássico Remo X Paysandu é retratado quase com uma estética mitológica, dada a importância que o esporte e o confronto representam para o povo. A forma como isso se mistura à imaginação e às vivências de Castanha é sutil e belo ao mesmo tempo. Todo colorido em aquarela e utilizando um estilo de traço que se mescla entre um tom urbano e rústico ao mesmo tempo, o álbum tem um visual impressionante! Com grande domínio da narrativa, Gidalti Jr. entrega uma diagramação de quadros e páginas cm um ritmo em consonância total com as tramas.
Castanha do Pará foi inspirado na obra Adolescendo Solar, de Luizan Pinheiro, livro que busca expor de forma crítica a diversidade cultural brasileira, em especial ao que se refere ao Norte do Brasil. Financiado pelo Catarse, a obra independente atingiu a verba necessária e foi publicada no início deste ano. Premiando este trabalho exemplar, foi vencedor do 59º Prêmio Jabuti, a mais importante premiação literária do Brasil. O resultado é um belo álbum de 80 páginas impressas em papel offset 150 gramas e acabamento com capa dura (com guardas em colorplus 180g).
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