Transgressor do início ao fim
Misturar ficção e realidade em qualquer produto audiovisual não é algo muito comum de encontrarmos, felizmente existem algumas boas produções que fazem isto com uma qualidade excelente. Em “Era o Hotel Cambridge”, além destes dois elementos, é adicionado um terceiro, a arte. Juntos eles criam a atmosfera necessária para abordar o tema das ocupações de propriedades sem funções sociais.
No centro de São Paulo encontra-se o Hotel Cambridge, um prédio abandonado e sem uso social como tantos outros. Ele foi ocupado por centenas de famílias vindas da própria cidade, mas também de outros cantos do Brasil e de países, como Colômbia e de regiões do Oriente Médio. A multiculturalidade predomina no prédio, mas a ideologia dos moradores é apenas uma: ter um teto sobre si.
A ideia inicial da diretora e roteirista Eliane Caffé, estava baseada apenas na convivência entre os moradores imigrantes refugiados do Hotel, com o tempo ela foi deixada de lado, expandindo a narrativa para o acompanhamento de todos os “grupos”. Com o aumento dos personagens algumas histórias acabam tornando-se menos desenvolvidas, mas nada que afete a importância de cada um dentro daquele espaço único e democrático. O foco principal está em Carmen Silva, que interpreta a si mesma, como a líder da ocupação, sem dúvida é a personagem mais forte e presente. Apesar da escolha de expandir o núcleo de personagens, a narrativa sempre acaba dando uma relevância maior para os refugiados, e isto fica claro para o espectador desde o início.
Tratando-se de uma obra com um estilo documental e interpretações de atores e moradores reais, existe uma coesão tão presente com a história que deseja ser contada, onde por muitas vezes é impossível separar quem está atuando. Como dito pela própria diretora, esta naturalidade era o que a sua história precisava para ser contada e tornar tudo aquilo real, pois as palavras saíam da boca de quem realmente vivencia aquela situação em seu cotidiano, pois eles também colaboraram com o próprio roteiro durante a pré-produção. Muito do que cada um é na vida real está lá, na forma mais original possível. As amarras da narrativa estão na possível intervenção do Município, na figura dos Juízes e da Polícia Militar, acarretando no despejo daquelas famílias que já não tem mais onde morar. Este conflito dramático permeia todo o filme, é ele que leva um certo suspense e apreensão nos momentos mais tensos.
Entre todos os pontos técnicos que fazem parte da obra, a fotografia faz seu papel de forma simples, criativa em alguns poucos momentos, mas com o objetivo de deixar a atuação prevalecer. A narrativa não precisa dela para se tornar mais dramática ou chamativa, isso fica por conta da direção artística de Carla Caffé, irmã de Eliane. É verdade que o próprio prédio usado nas filmagens seja o verdadeiro Hotel Cambridge, logo, ele já estaria pré-preparado, mas toda a caracterização de espaços específicos está impecável.
O terceiro elemento mencionado anteriormente é inserido milimetricamente dentro da estrutura original do roteiro, a arte em forma da interpretação ilusória, onde juntos, a trilha sonora e a fotografia se misturam e dão sentido para um belo espetáculo teatral. Embora esta cena seja distinta do restante de tudo que assistimos até aquele momento, ela faz sentido quando inserida dentro de um contexto onde tais movimentos voltados para a metodologia de ocupar são taxados com insultos preconceituosos de todos os tipos. Muitas reflexões podem ser feitas em diversos aspectos: a importância destes movimentos para a identidade de uma parcela da população que não possui o acesso básico e necessário para sobreviver.
Como resultado final, Eliane no papel de diretora, e Carmen “atuando”, conseguem criar um filme transgressor, ele ultrapassa os limites da produção cinematográfica, da própria sala de cinema, ele transmite uma reflexão geral contra a intolerância pela qual passamos em tempos como os de hoje. Ele propicia situações singulares, como a que eu mesmo presenciei pessoalmente pela primeira vez na vida, ao final do filme os aplausos de uma sessão lotada em um cinema dentro de um bairro predominantemente de classe média alta.
“Era o Hotel Cambridge” teve sua estreia no dia 16 de março em todo o Brasil, assista ao trailer:
Por Guilherme Santos
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