O lugar da criatividade não é negligente. Mentes criativas são ágeis e inquietas… E ao passo que voam livres, possuem uma maneira própria de sistematizar ideias e conceber projetos. Essa forma de inteligência é (infelizmente) diminuída frente ao rigor acadêmico científico. Normas, métodos, metodologias, técnicas, pesquisas de campo, análises, etc, etc, etc. A cientificidade embutida no mundo e decifrada pelas mentes daqueles que fazem disso sua vida pode endurecer o olhar para a beleza e a genialidade. O conflito entre esses universos é desenhado (quase que didaticamente) pelo longa “Soundtrack ”, dirigido pela dupla 300ml Manitou Felipe e Bernardo Dutra.
O esperando filme que entra em cartaz hoje (06 de julho) traz em seu elenco Selton Mello, Seu Jorge e o britânico Ralph Innerson (do ótimo “A Bruxa”). E pode-se dizer que é em tempos não se vê um filme nacional tão ansiado por público e crítica. Que bom! Bom porque além da boa reflexão trazida pelo trabalho, ele não decepciona.
Deve-se aqui abrir um parênteses: “Soundtrack” não é um filme divertido e dinâmico, e muito menos um filme para ver e relaxar. Ele é longo, denso e feito para criar inquietação. Talvez a mesma que invada a cabeça de artistas em processo de criação. Mas é, certamente, um filme que vale a pena ser visto!
Cris (Selton Mello) é um fotógrafo em busca de espaço em seu concorrido e lucrativo mercado. Para realizar um trabalho diferenciado, o rapaz se expõe à situações extremas para capturar algo capaz de mexer com o público (no emocional e/ou no imaginário). O trabalho de sua vida se torna tangível quando recebe a liberação para fotografar em uma estação de pesquisa no Ártico. A viagem programada para durar 14 dias tem uma finalidade: Selfies. O projeto de Cris consiste em relacionar músicas aos seus portraits, para que as fotos expressem como o artista se sente no exato momento de cada clic. Em sua proposta, o público teria a oportunidade de escutar a mesma música que ele e entender suas sensações a partir dessa combinação audiovisual.
A estação de pesquisa localizada em meio ao infinito gelado do Polo comporta quatro pesquisadores, dentre os quais o botânico brasileiro Cao (Seu Jorge), e o meteorologista Mark (Ralph Innerson), com quem Cris divide o container. Sua busca por isolamento se concretiza ao expor seu projeto para esse seleto grupo de cientistas. Vendo as condições de vida na estação como algo que os distancia de tudo que lhes é importante em prol da ciência, o grupo residente hostiliza o recém chegado, como se sua busca fosse tola e infundada. Aos poucos, porém, o ego acadêmico científico vai dando lugar a uma controversa admiração, que culmina na aceitação de que eles (os melhores do mundo em suas áreas) são insensíveis para outras formas de genialidade.
O convívio (especialmente entre Cris e Mark) traz à tona a discussão de valores trazida dia após dia em nossas jornadas de trabalho. A valorização de determinadas áreas, invalidando o fato de que para que haja avanço é necessária a participação de toda sociedade, a rivalidade inventada entre formas de ganhar a vida – desmerecendo uns em prol de outros. Todos esses preconceitos vão caindo por terra na medida em que, naquele contexto socialmente isolado, todos percebem o quão são necessários uns aos outros e, mais do que isso, o quanto abrir a mente para outras possibilidades é engrandecedor.
Como um reforço da valia de ser aquilo que se escolhe ser, o longa traz (de forma muito inteligente) áudios de momentos históricos para a ciência, tratando não só da abordagem do ceticismo mas também de fé. Os contrapontos traçados no filme são muitos e com potencial para levar o público em questionamentos internos profundos.
A direção de 300ml consegue trazer ao filme um ritmo que permite aos expectadores explorarem as inquietações que passam a afligir Cris em sua estada na base. O pequeno elenco (infelizmente composto só por homens) desempenha um trabalho orgânico. Uma grata surpresa é a participação de Seu Jorge, mostrando que nem só de “Burguesinhas e Carolinas” se faz sua talentosa carreira.
O filme foi rodado no inóspito deserto de gelo da Islândia, local sobre o qual o
Diretor de fotografia Felipe Reinheimer teve um olhar inteligente e sensível. Como em um quadro branco para colorir, o longa aproveitou a locação em uma proposta de planície isotrópica¹ preenchida pelas relações e pelo avanço no trabalho de Cris.
A trilha sonora tem um papel fundamental no filme (haja visto seu próprio título). O interessante de se observar é que ao longo da narrativa o personagem de Selton mostra como a música tem o poder de alterar a nossa percepção sobre um mesmo fato (seja uma atividade, uma paisagem, uma situação ou uma obra). E ao longo do filme é exatamente esse papel da trilha sonora bem encaixada de “Soundtrack”.
No Brasil hoje é notória a pouca diversidade de gêneros nas produções. Usualmente o que emplaca e fica por semanas nos cinemas são comédias (nenhuma crítica ao sucesso delas, aliás, somos muito bons nisso!). Contudo, é preciso ver que aqui também se fazem muitos trabalhos de grande qualidade (mesmo no nível internacional) e que merecem ser consumidos (PRESTIGIADOS) pelo público – o que, consequentemente, impulsiona novos filmes diversificados. Por vezes vemos trabalhos internacionais de qualidade similar sendo amplamente vistos em terras tupiniquins, enquanto negligenciamos a prata da casa. Já é passada a hora de abrir o coração (e os olhos) para o que fazemos por aqui, especialmente quando não se tratar do gênero comédia.
Então aqui fica a dica para quem gosta de boas obras, assista “Soundtrack”. Se quer se abrir para algo diferente do que está acostumado a ver no cinema nacional: assista. Se quer incentivar mais (bons) trabalhos além de comédias: assista. Só assista. Reflita. E aproveite!
¹ superfície com as mesmas propriedades físicas em toda sua extensão sobre a qual se estabelecem relações diversas que originam um espaço geográfico.
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