As implicações do excessivo influxo tecnológico na sociedade do século 21, que tem como representante da moda a inteligência artificial, constituem um tema constante nas esferas filosóficas, sociológicas e artísticas contemporâneas. Isso ocorre porque a existência do ser humano moderno, a cada dia que passa, se perde gradualmente de sua autenticidade em prol de uma crescente mecanização. O cinema se destaca como a forma de arte mais competente na exploração desse tópico, com produções abundantes, notadamente originárias de Hollywood. Nesse contexto, o cultuado cineasta Bertrand Bonello apresenta seu “A Besta”, mas com uma visão que se distancia da hollywoodiana geralmente comercial.
Portanto, as escolhas narrativas do cineasta francês não seguem o percurso convencional. A história é sobre Gabrielle (Léa Seydoux), uma mulher de incomparável beleza, que se submete a um processo de “purificação” dos sentimentos, uma prática comum na Paris futurista onde reside. A complexidade de sua situação aumenta quando ela cruza caminhos com Louis (George MacKay), igualmente disposto a abdicar de suas emoções. Em uma produção de ambições mais comedidas, essa história seria desenvolvida com início, meio e fim. No entanto, Bonello estrutura sua obra de modo a não seguir uma trajetória linear, apresentando o casal em fragmentos dispersos ao longo da narrativa: uma Paris do século 18, uma contemporânea e a futurista. Essa fluidez temporal tem como objetivo provocar um desconforto no espectador e incentivá-lo a questionar a realidade dos eventos. São sonhos da protagonista, realidades alternativas ou uma forma de reencarnação de alta tecnologia?
Embora se possa compreender que todas essas “encarnações” sejam concebidas pela máquina encarregada da “purificação”, não se pode afirmar categoricamente se essas situações tiveram alguma base na realidade fílmica em algum momento. Na verdade, o roteiro não busca fornecer uma interpretação definida; seu objetivo é discutir a sociedade de consumo, a reificação e a deterioração das relações humanas, destacando a insensibilidade como uma aflição coletiva.
Para ilustrar esses pontos, é relevante mencionar que nas versões dos personagens do século 18, Gabrielle é casada com um magnata que detém uma fábrica de bonecas. Essas bonecas são confeccionadas artesanalmente e capturam as feições humanas. Em uma sequência crucial de eventos, a fábrica é consumida pelas chamas e, com um único corte na montagem, já somos transportados ao futuro, onde a humanidade se tornou uma emulação das bonecas: desprovida de sentimentos, com expressões imutáveis e uma perfeição estética, sem vestígios de envelhecimento. Ou seja, uma manifestação do “homo máquina”.
Além desses momentos, o filme ainda aborda os malefícios que podem ser causados pela internet ao apresentar um personagem ao estilo QAnon, ou seja, um homem incapaz de estabelecer relacionamentos com as mulheres, e as culpa por isso, já que ele se vê como alguém perfeito. Por causa disso, projeta sua insatisfação e violência em vídeos que são postados em seu canal, como os do Youtube. Bonello ainda usa a montagem para fazer com que certas cenas envolvendo o “youtuber misógino” se repitam como uma fita cassete que é rebobinada. Assim ele pede ao espectador que presencie em repetição os sintomas de uma doença que começa no ambiente online para despois extrapolar à realidade.
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Em resumo, “A Besta” é um estudo sobre a relação da tecnologia e do capitalismo com o declínio da espécie humana, e usa ironicamente o cinema, a arte talvez mais capitalista que existe, para transmitir sua mensagem. Assim, não surpreende quando, nos momentos finais, Gabrielle emite um grito que evoca a atmosfera de um filme de terror.
* Este filme foi visto durante a 47ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo.
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