Para um apreciador de cinema, é constrangedor admitir que nunca viu um clássico cinematográfico. Particularmente, jamais tive a oportunidade de contemplar diversas obras-primas da história, e sinto a necessidade de corrigir essa lacuna. Para iniciar minha redenção como cinéfilo, decidi assistir pela primeira vez a “A Sereia do Mississipi” em uma sessão na Cinemateca Brasileira, na qual um considerável número de pessoas compareceu. O filme em questão é uma intrigante mistura de suspense, romance e crime, dirigido por François Truffaut, estrelado pela encantadora Catherine Deneuve e pelo renomado Jean-Paul Belmondo, que também foi homenageado em uma mostra exibindo alguns de seus trabalhos.
Sou admirador fervoroso de Truffaut, especialmente de “Os Incompreendidos”, e meu apreço pelo diretor apenas cresceu após a conclusão de “A Sereia do Mississipi”. A trama gira em torno de Marion, interpretada por Deneuve, que manipula o rico empresário Louis Mahé, vivido por Belmondo, de maneira implacável. Ela o utiliza inicialmente como fonte de dinheiro e depois desaparece sem deixar rastros. No entanto, Mahé não consegue esquecer essa traição. Embora ainda ame aquela mulher que conheceu por meio de um anúncio no caderno de relacionamentos de um jornal, nutre um desejo ardente de vingança. Sim, na década de 60, as pessoas recorriam a anúncios em busca de parceiros para o matrimônio, o que se compreende facilmente, pois hoje fazemos o mesmo nas redes sociais online. É evidente que, independentemente de ser no presente ou no passado, é fácil cair em golpes como o que o protagonista sofreu.
Marion é de fato uma trapaceira destrutiva, e tal característica é simbolicamente retratada em algumas sequências. Em determinado momento, por exemplo, ela é vista em um passeio com seu novo marido por entre uma exuberante plantação de tabaco, que faz parte da fábrica de cigarros dele. Além de vendê-los, Mahé é viciado nesses cigarros, assim como se vicia nessa mulher. Ela, semelhante ao tabaco em floração, é ao mesmo tempo bela e letal.
A fim de evidenciar a complexidade do relacionamento do casal, Truffaut constrói cenas que destacam a dualidade que permeia sua dinâmica, como nos enquadramentos dentro de carros em movimento: quando há conflito entre os dois, a câmera se volta para o banco traseiro, mostrando-os de costas. Quando estão em sintonia, são filmados de frente, apenas separados pelo para-brisa, contemplando o horizonte. Amor e ódio se entrelaçam ao longo dessa jornada, que se transforma em um road movie conflituoso.
No entanto, Mahé está profundamente apaixonado (quem não estaria?), mesmo que, inicialmente, desejasse a morte de seu objeto de desejo. Por essa razão, decide prosseguir com o relacionamento, mesmo sem ter certeza se ela o ama ou não. Novamente, a dualidade se faz presente, dessa vez na personalidade da personagem interpretada por Deneuve, que nunca se entrega por completo ao seu amante. Ela adota atitudes variadas ao longo da projeção, tornando difícil para o espectador compreender suas verdadeiras intenções. A construção da diva francesa nesses momentos é um tanto exagerada, como era comum nas interpretações daquela época, que absorviam muitas características teatrais. Sua teatralidade marcante também é relevante e, aliada ao exagero estridente mencionado anteriormente, deixa claro que a personagem sofre de algum transtorno psicológico.
Mahé, portanto, é vítima da loucura dessa mulher, e parte com ela em uma jornada que se transforma em fuga após alguns atos criminosos que ele comete sob influência dela. Truffaut então questiona a si mesmo e aos seus espectadores qual é o limite do amor. Seríamos capazes de tudo por ele? Bem, ao vislumbrar Catherine Deneuve de vestido florido logo na primeira cena em que ela aparece, dá para dizer que iria ao inferno por ela.
Quer estar por dentro do que acontece no mundo do entretenimento? Então, faça parte do nosso CANAL OFICIAL DO WHATSAPP e receba novidades todos os dias.