Entre 2010 e 2014 Portugal passou por uma acentuada crise financeira, resultante da crise global que se instaurou em 2008 após a bolha imobiliária nos EUA (como vimos no excelente filme “A Grande Aposta”). Com um empobrecimento gritante da classe média e uma miséria ainda maior da classe mais baixa, o governo, então, começou a usar recursos para ajudar empresas. E é nessa questão que o segundo volume de As Mil e Uma Noites injeta seu alto grau de crítica social, com um humor pra lá de sarcástico. E apesar da longa duração, o diretor Miguel Gomes consegue administrar bem suas três histórias: “Crônica de Fuga de Simão ‘Sem Tripas'”, “As Lágrimas da Juíza” e “Os Donos de Dixie”.
Em Crônica de Fuga de Simão “Sem Tripas” o diretor mostra toda seu vasto conhecimento cinematográfico para nos contar uma história inventiva, ao mesmo tempo que serve de estudo de personagem e crítica social. Ele usa planos mais abertos escondendo seu personagem principal pelo vasto ambiente desolado, fazendo com que um mero homem franzino suma ainda mais do mapa. Não por menor mantém um drone rondando esse sujeito, justamente para fazer o contraponto da opressão do capital que devastou milhares de vidas a custo de um doentio enriquecimento de poucos. Além de usar uma narração em off para nos situar, porém, nada que tire a imersão da história ou a deixe explicativa demais, pelo contrário, essa narração é brilhante em determinados pontos onde apenas nos dá pistas, e nos deixa reflexivos quanto ao que estamos vendo.
Outra coisa excelente desse primeiro seguimento é a atuação precisa de Chico Chapas. Ele interpreta o Simão “Sem Tripas” com uma fisicalidade impressionante, sempre andando curvado, com um olhar triste e cansado, nos faz sentir pena ao passo que com o desenrolar da história se justifique sua mistificação perante a resistência conta o governo e os policias.
O Segundo seguimento, com certeza é o mais interessante. “As Lágrimas da Juíza” pega o espectador de surpresa e tem uma linguagem completamente diferente do antecessor. Se em “Crônica de Fuga de Simão Sem Tripas” tínhamos um estudo de personagem bem aplicado, o que temos aqui é um grande seguimento de drama de tribunal. Praticamente todas as tomadas são fechadas nos rostos dos personagens, extraindo todas as suas emoções e nos aprofundando em seus devaneios e confissões. Além de ser extremamente caricatural, e a cada revelação o absurdo vai ficando maior, porém, com um texto extremamente afiado vai conquistando o espectador para ver até onde aquilo vai chegar.
Novamente temos como um meio de ligação a crítica ao empobrecimento descontrolado da sociedade. Todas os crimes cometidos estão ligados de alguma forma a pobreza dos cidadãos, mas não daqueles que já eram pobres, e sim daqueles que gozavam de uma vida frutífera e agora jazem em vidas medíocres. O que nos leva a um questionamento singular: “O homem se torna mau pelas circunstâncias? ” Ao que parece, sim.
Já as atuações de “As Lágrimas da Juíza” são todas engraçadas e excelentes, contudo, o grande destaque fica por conta da Juíza Luísa Cruz. Luísa dá vida a sua personagem de uma forma espetacular, administrando muito bem a transição de uma infalível e cruel juíza, até uma sentimental e desacreditada mulher. Completando isso tudo ainda consegue emocionar com seus diálogos afiadíssimos sobre a natureza humana.
Contudo, “Os Donos de Dixie”, terceiro seguimento, é extremamente problemático. Além de estender-se muito mais do que deveria. A ideia de seguir um cachorro pelos seus vários donos em diferentes apartamentos do mesmo prédio poderia ser interessante. Mas é extensa demais e acaba cansando o espectador, em vários momentos dessa parte o diretor desvia para algumas subtramas desnecessárias que apenas reforçam o que já se estava sendo dito: Ali naquele apartamento vive pessoas de diferentes raças, idades, gênero e sentimentos, porém, todos são ligados pela vida humilde e sofrida. E, se a narração em off funciona na primeira e segunda história, nessa terceira parte interfere demais no desenvolvimento e hora ou outra soa explicativa. Além da trilha sonora que torna-se piegas em algumas ocasiões.
Por fim, “As Mil e Uma Noites Volume 2, O Desolado” é um forte longa-metragem sobre a crise econômica portuguesa e como isso afetou, principalmente, a classe trabalhadora. É ainda desanimador assisti-lo tendo em mente o atual momento brasileiro, traçar paralelos se torna quase inevitável, e o medo assola a mente de quem o assiste. Enfim, é um retrato desolador, criativo e com certa dose de humor sobre a realidade.
Por Will Bongiolo
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artigo muito bom