Uma relação de pertencimento e liberdade pela qual pais, filhos, irmãos, adultos e crianças sofrem através das mudanças da vida.
Distante de um cinema mais voltado para o seu lado comercial e superficial quanto ao conteúdo, parece que já vem de algum tempo que pelo menos a grosso modo a maioria das produções nacionais que entram para o circuito tem em sua forma um conceito mais mundano. Parece uma definição genérica, mas ao assistirmos filmes como Campo Grande, da diretora carioca Sandra Kogut e analisarmos a forma como a produção é construída e todo o contexto social ali presente, uma outra perspectiva muito além da própria obra torna-se visível.
Contendo apenas um bilhete de aposta da Mega-Sena, onde o nome e endereço de Regina (Carla Ribas) está escrito no verso, duas crianças são abandonadas pela mãe na entrada do seu condomínio no bairro Ipanema, zona de classe média alta do Rio de Janeiro. O mesmo bilhete de loteria que informa o endereço de Regina já é um indício das diferenças que serão postas em tela durante os próximos minutos em relação a vida de Regina, da filha Lila (Julia Bernat) e das crianças, Ygor (Ygor Manoel) e Rayane (Rayane do Amaral).
Muito semelhante ao que é característico nos filmes de Kléber Mendonça Filho (O Som ao Redor, Aquarius), quando mesmo que exista uma história focada em personagens específicos, o plano de fundo também tem sua perspectiva abordada e que aos poucos está integrada de maneira efetiva ao enredo principal. No caso de Campo Grande, um pouco de todos os aspectos são aproveitados ao mesmo tempo em que a narrativa evolui sem o sentimento de que determinado personagem seja o mais relevante, principal ou coadjuvante. O roteiro foi escrito em parceria com Felipe Sholl e não necessita de eventos marcantes para que a história seja intensa, pois ela é composta de muito sentimento entre o contato de cada personagem, e essa sensação de que todos eles têm um papel importantíssimo na construção de uma clima maior dentro de cada acontecimento.
Logo torna-se clara a diferença de vida da família de Regina e dos pequenos irmãos, e a caracterização de cada um deles é extremamente bem representada na atuação sem exageros. Isso também em relação às crianças, pois na primeira parte do filme algumas cenas delicadas mas que são pertinentes para que formem uma imagem estética porém necessária para o entendimento de cada personagem envolvido. O fato de o nome da duas crianças ser o mesmo na vida real demonstra o quanto foi intenso o pensamento da direção para que estes personagens antes de tudo infantis, a noção de realidade se misture. Não à toa que Campo Grande e Kogut ganharam o prêmio de Melhor Direção no Festival de Havana em Cuba e de Málaga na Espanha, pois a missão de dirigir Ygor e Rayane é nitidamente baseada em uma concepção de que o personagem passa por transformações graduais, e esse ponto crucial é determinante para a realidade imposta em cima deles.
Campo Grande trata de mudança e a transformação que estas causam na construção de um ser humano diferente. E essa construção pessoal e social está vista de forma metafórica no cenário, onde em muitas das cenas externas, as ruas estão repletas de construções de prédios de comércio ou residenciais que fazem alusão para este entorno. O ritmo de uma cidade grande do tamanho do Rio de Janeiro automaticamente faz parte junto com o barulho das obras e dos carros, fazendo da montagem uma saída natural para a mistura entre o externo caótico e a progressão narrativa.
Sem vícios narrativos para resoluções simplistas de roteiro, Campo Grande é o oposto, uma produção nacional consistente de forma e conteúdo. A preocupação de levar a realidade para a tela pode ser uma tarefa mais difícil para determinados realizadores, para Sandra é uma tarefa natural, assim como em sua filmografia que tem dois outros filmes, Mutum e Um Passaporte Húngaro. Quanto mais real uma obra, mais reflexão ela pode exercer, como a causada após a estreia do filme, onde os moradores do bairro Campo Grande na zona oeste do Rio de Janeiro se manifestaram sobre a ausência do filme nos cinemas locais, e após a organização através das redes sociais o desejo foi atendido. Essa é a essência deste filme, estas são apenas algumas das reflexões e certamente mais outras são identificadas a cada vez que esta obra for assistida.
Por Guilherme Santos
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