A peça “Cesária”, apresentada no Teatro Cacilda Becker, emerge no contexto da visibilidade e representação do universo transgênero sem recorrer a estereótipos ou clichês, um passo importante para uma representatividade significativa. Ao elenco da Coletiva Profanas, composto por AIVAN e Nata da Sociedade, junta-se Morgana Olívia Manfrim, que além de atuar, assinou a dramaturgia e realizou a direção.
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A peça trabalha com duas temporalidades distintas: em uma, observamos o monólogo de uma Mãe que matou o Pai, nos arredores temporais da pandemia de COVID-19; em outra, no passado, acompanhamos a jornada do herói do Filho, que após receber um recado do Pai, sai de casa para procura-lo e comprar alguns objetos que ele pediu. Ainda que tenham essas duas ordens temporais distintas, esses acontecimentos são lineares em suas temporalidades. O ponto de intersecção que as encontra é a travesti Cesária, que faz a figura do mentor e atua como Exu, reorganizando a narrativa em apenas uma linha do tempo, o que marca a entrada para o segundo ato.
A escolha da divisão em atos talvez não fosse necessária, tendo em vista a fluidez do ritmo que permeia as quase duas horas de duração do espetáculo. Entretanto, apenas o primeiro ato, com poucas alterações, seria o suficiente para apresentar a história proposta, pois o segundo não acrescenta nada tão significativo para a trama, à exceção do momento final, pois o constante reforço do roteiro sobre o assassinato do pai entrega o que deveria ser o ponto alto do segundo ato.
Quanto à cenografia, no primeiro ato, o monólogo da Mãe é enunciado a partir de sua residência, sem alterações significativas de espaço, enquanto a jornada do Filho é permeada por lugares distintos, como a casa, a rua, a loja etc., que vão se desenhando conforme move-se uma estrutura composta por placas erguidas com rodinhas. Por sua vez, a relação cena/extracena ganha importância a partir de seu jogo com a temporalidade, na relação “desejo – lacuna – movimento”, algo enunciado pelo texto que se converte na forma estética da narrativa.
O elenco, constituído por pessoas trans, é formado por AIVAN (Mãe), Morgana Manfrim (Filho) e Nata da Sociedade (Cesária), em que os duas primeiras são relacionadas por laços familiares, e se relacionam com Cesária a partir do pedido da Mãe para que ela guie o Filho, o que a peça mostra acontecer. Quando esses personagens são dispostos em cena, percebe-se que a economia dramática entre presentes e ausentes é relevante apenas no primeiro ato, pois o Filho busca o Pai, e a Mãe conversa sobre o Pai que, aparentemente, foi assassinado. A possível morte de Cesária pelo Filho e a entrada no segundo ato torna irrelevante a economia dramática, pois se desenha a intensidade das personagens, onde as máscaras caem e o público as vê claramente.
Por sua vez, a hierarquia dramática também é dividida entre os dois atos. No primeiro, a personagem Cesária, cujo nome remete à intervenção cirúrgica do parto para evitar um risco à vida da mãe e do bebê, ao ser a detentora do conhecimento e da mesa de trocas de Exu, é privilegiada e pode ser formulada pela seguinte questão: Qual intervenção delicada media a violência que corpos trans sofrem na margem social?
O segundo ato enfatiza o Filho e a descoberta que seu pai é uma mulher trans e o momento final revela que tudo o que foi apresentado era um sonho, o que submete todo o espetáculo ao ponto de vista do plano onírico do Filho.
O roteiro, que se articula a partir do princípio de causalidade acima exposto, “desejo – lacuna – movimento”, ainda que recorra às tradições populares, tal como a jornada de herói e a atual onda do uso do tempo espiralar, traz à cena um conjunto de princípios habituais, mas ganha relevância pela representatividade que possui, uma vez que esse tipo de narrativa nunca é apresentado para pessoas trans. Soa como se a importância da proposta fosse mais interessante que a história, algo que nesse contexto é inquestionável.
No geral, “Cesária” oferece uma narrativa ousada e valiosa, desafiando as normas teatrais convencionais e contribuindo para uma representação mais significativa e inclusiva do universo trans no teatro contemporâneo. Sua importância na promoção da diversidade e inclusão é incontestável e acrescenta uma voz preciosa ao cenário teatral.
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