Naturalismo e Necessidade
Poderíamos começar dizendo que esse é mais um filme de temática LGBTS. Que é mais um filme onde temos homens se relacionando. Que é mais um filme que questiona as relações pessoais. Que é mais um filme como qualquer outro, mas não. A estreia do mineiro Marcelo Caetano em “Corpo Elétrico” (Body Electric) é muito mais que isso. Contudo, é um filme inadequado para pessoas com preconceito.
O longa conta uma parte da vida de Elias (Kelner Macedo), um rapaz vindo do nordeste que trabalha em uma confecção feminina na cidade de São Paulo. Ele é assistente da estilista Diana (Dani Nefusi), mas seu grande sonho é ter a liberdade de expressar seus desejos, seja na vida pessoal e/ou profissional. Com pouco contato com sua família na Paraíba, seus vínculos afetivos são formados com outras pessoas do trabalho e com os homens que se encontra. A medida que se aproxima dos colegas de trabalho, como Fernando (Welket Bungué) e Wellington (Lucas Andrade), ele reflete sobre as possibilidades de futuro vendo os amigos seguirem caminhos diferentes dos seus. Driblando a solidão e buscando inspiração no caos e na alegria ao redor, Elias encontra o conforto e o prazer explorando a cidade, conhecendo lugares e pessoas para se entender e crescer como individuo.
Em “resposta” ao poema “Eu Canto o Corpo Elétrico“, de Walt Whitman, o filme escrito por Gabriel Domingues e Marcelo Caetano, com colaboração de Hilton Lacerda, é montado por um lapso natural e necessário da vida: A descoberta do ser quando precisamos assumir nossa maturidade da vida adulta. Logo na primeira cena, temos apenas um plano, pós sexo, onde o protagonista conversa com um homem que não aparece, só vemos seus pés. É nesses primeiros segundos que já podemos sentir a leveza com que as relações serão trabalhadas na escrita e no visual. Não importa quem é o outro homem, importa quem é Elias e o que ele representa na trama.
Aberto à uma construção dinâmica e de improvisos, Caetano nos deixa inerte nessa experiência de poucos planos, mas de muito conteúdo narrativo. Não precisamos ver o que acontece em determinada situação, pois a fluência faz com que já imaginemos. Não precisamos tentar nos aproximar de nenhum dos personagens, eles já fazem isso naturalmente. Não precisamos ser gays para compreender o movimento Queer e sua relevância para a “comunidade” LGBTS. Tudo é tão naturalista, que a ficção ultrapassa sua função, vai além de uma linguagem documental e se torna o que o cinema brasileiro há muito não sabe mais fazer: Ser leve e ao mesmo tempo extremamente questionador.
Se “os semelhantes se reconhecem“, esse é um exemplar que justifica a expressão, não importando a classe, cor, religião e/ou sexualidade. Aqui, o que importa é o olhar de seu protagonista sobre o mundo que vive e descobre a cada dia. Assim, podemos dizer que o Elias de Kelner Macedo, dá ao espectador seu próprio ponto de vista sem precisar explicitar o “veja como eu vejo“. De maneira orgânica Macedo é o que precisa, expõe graciosidade na tela e transborda reconhecimento afetivo.
Enquanto, em paralelo, os personagens coadjuvantes são expostos à construir esse olhar do protagonista, há aqueles que merecem destaque. Entre eles o ex-namorado, Arthur, vivido por Ronaldo Serruya, que serve como uma especie de porto seguro e calmaria a inquietude de Elias; Márcia Pantera vivendo ela mesma um show de “bate cabelo” e simpatia; a Mc Linn da Quebrada como Simplesmente Pantera, despudorada e cheia de presença como já se faz em seu trabalho como performer e cantora; e Lucas Andrade com uma graciosidade ímpar, numa representação física e onírica da diva gay/pop Grace Jones, que rouba várias cenas.
Nessa narrativa pulsante e controlada, jamais poderíamos deixar de reconhecer o trabalho da mixagem e edição de som, realizado por Rúben Valdes e Lucas Coelho. Captar o som em ambientes barulhentos como uma confecção, driblar os ruídos desnecessário e dar projeção a voz nos diálogos, foi um trabalho primoroso se analisarmos que um grande déficit do cinema nacional é o departamento de som. E há também aquele casamento bem feito entre a montagem e a direção de fotografia. As imagens captadas por Andrea Capella são indiscutivelmente precisas e orgânicas. Não há rebuscamento, nem analogias, é o cru que realça aquela realidade. Lincada a edição de Frederico Benevides, a “urgência” nos cortes secos, a fluidez nos rápidos trechos de slow motion e todo o plano sequência exposto dão um tom puro ao desenvolver essa eletricidade corporal.
Sem nenhum “global”, “Corpo Elétrico” nos prende, nos entretêm, nos questiona e, o mais importante, nos abraça. Não se trata de um filme sobre gays, mas um filme sobre o povo, sobre o poder das relações, sobre a grandiosidade das pequenas coisas. O corpo elétrico somos nós, a diversidade, a força do amor, a fluidez do respeito e a energia da empatia. Uma poesia para quem usa seus sentidos sem esquecer a mente. Uma afronta aos pobres de espirito. Um rito de passagem para quem quer vivenciar. Assim, chegamos ao fim, escrevendo com os pés, porque as mãos estão ocupadas batendo palmas à produção.
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