O grupo Matamoscas Teatral navega com maestria através das águas traiçoeiras do cotidiano corporativo e da busca solitária de sua protagonista em uma instigante criação intitulada “Desempregada”. A peça é uma incursão no terreno das simbologias que residem nas narrativas de super-heróis e do avanço do discurso neoliberal, ancorada nas reflexões de “Sociedade do Cansaço“, de Byung-Chul Han, e nas tramas mitológicas de “O Herói de Mil Faces“, de Joseph Campbell e se encontra como uma saborosa comédia ácida de fim de noite.
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A peça acompanha a história de uma personagem sem nome, “Heroína”, que após ser demitida recebe a ajuda de um mentor, o “Herói de verdade”, para seguir os passos da jornada do herói. A medida em que o roteiro heroico avança, o público acompanha cada passo da jornada do herói projetado em um telão, ao mesmo tempo que vai percebendo a falência da mentalidade neoliberal no palco. Isso ocorre pois, cada passo, ao ser encarado na realidade em que a personagem se encontra, demonstra as falhas da mentalidade capitalista que acredita que cada pessoa, se seguir um “roteiro”, consegue, individualmente, ser um super-herói e/ou atingir um determinado objetivo.
As sequências narrativas são sempre comentadas e contam com interferências cênicas por um personagem chamado “Contrarregra”, único que interage direta e constantemente com o público, o que dá a ele o contorno narrativo de personagem, e com a cena, algo associado à sua função no teatro. Essas intervenções são um recurso muito interessante.
A cenografia é pensada em um lugar que beira ao reconhecível, pois um mesmo cenário serve como o quarto da Heroína, um escritório, um apartamento etc. Ainda que simples, pois constituído de poucos objetos que conferem certa corporeidade minimalista à cena, a escolha por essa estética é pertinente, pois existe uma conjugação com um telão, que projeta os passos da “jornada do herói”, vídeos da Heroína correndo em certos lugares pra alcançar publicidade, uma projeção do que ela vê em seu celular, além de, sobretudo, ser um adorno cômico.
Dessa forma, o palco e o telão são complementares, em que a estética do ridículo, em sentido positivo de provocar o riso, escárnio e zombaria, estabelecem um diálogo direto com a condição da personagem e complementam o tom de “riso de nervoso” que a peça tem. Por mais que a ideia seja boa e funcione, a estrutura do teatro não favoreceu a proposta, tendo em vista que a projeção era muito fraca e isso dificultava a visão do que o público deveria assistir. Muitas coisas eram presumíveis pelo som ou pelos vultos que a tela permitia enxergar, algo que seria importante rever.
No que concerne aos personagens, o elenco funcionava bem, mas estava ligeiramente inseguro. À exceção do personagem Contrarregra, com a prodigiosa atuação de PV Hipólito, os demais eram pensados como cartunescos.
A protagonista Ana Alencar, que deu vida à Heroína, desempenhou um bom papel como protagonista. Sua performance foi agradável, mas não excepcional. Ela representa a realidade dos jovens desempregados no país, evidenciando as falhas inerentes à jornada do herói e trazendo à tona as dificuldades enfrentadas pelas mulheres em busca de emprego e reconhecimento, questionando os padrões estabelecidos.
O “Herói de Verdade”, interpretado por Franco Cammilleri, trouxe uma atuação divertida, e funcionava como uma fonte de entretenimento e desempenhava o papel de um coach inspirador, um dos “trabalhos” exploratórios que a nossa sociedade criou. Através de suas falas, movimentos corporais, visagismo referenciando super-heróis, o ator era capaz de demonstrar, de maneira satírica, o papel de mestre/guia da Heroína. Assim, seu desempenho bem-executado cativava o público, ao mesmo tempo que convidava a repensar os padrões e modos de propagar o sucesso e a bravura na sociedade.
PV Hipólito interpreta o personagem Contrarregra, com abordagem séria e tom afrontoso, reforçando a crítica à condição do país. Quando sua atuação interagia com a plateia, gerava-se uma atmosfera de desconforto ao destacar a absurda situação dos discursos que governam o Brasil. Quando seu enfoque era o palco, além de desempenhar o papel de contrarregra, comentava as imperfeições da jornada do herói. Sua presença sombria encontrava o tom agridoce da ironia e contrastava com o tom humorístico do espetáculo.
A Arqui-inimiga, Gabrielle Távora, com sua atuação cômica e entrega impressionante, ressaltou ainda mais o humor da peça. Suas cenas engraçadas proporcionavam um alívio cômico, colocando em questão se o título de arqui-inimiga realmente é necessário se não for em contexto fantasioso. Apesar das poucas cenas em que apareceu, conseguiu proporcionar um equilíbrio bem-sucedido entre a crítica social e a diversão descompromissada.
A hierarquia dramática privilegiava a Heroína, personagem, assim como os outros, destituída de nome, mas que em seu caso manifesta uma dupla função: é reduzida apenas à sua posição no jogo social do trabalho, ao mesmo tempo que consegue representar a juventude descartável nesse mundo. O encontro com seu mentor, o “Herói de Verdade”, forma uma relação conflituosa e engraçada de mestre-aprendiz. Nela, o personagem alienado em sua mentalidade de coach contrasta com a realidade material que a Heroína constantemente mostra a ele. Ainda que faça tudo que ele orienta, ela não consegue emprego, o que salienta que a jornada do herói e discurso motivacional funcionam apenas na teoria.
A relação da Heroína com a Arqui-Inimiga, sua antagonista forjada e responsável pela sua demissão, envolve um processo afetivo, que começa com ódio e termina em tom conciliatório, uma vez que o reencontro das duas apenas mostra os altos e baixos da demanda empresarial. Afinal, ainda que o mercado instaure o imperativo da competitividade, ambas são apenas funcionárias destituídas de qualquer poder.
Por fim, o Contrarregra é o único que interage com todos os personagens, funcionando similarmente ao corifeu do teatro grego. Ainda que na hierarquia dramática e teatral ele não seja o protagonista e se espera que ele atue na surdina, é através do ponto de vista dele que temos contato com o que será apresentado e tudo a que devemos nos atentar, o que faz com que a economia dramática, organizada em cenas burlescas, refine o humor ácido hegemônico do roteiro.
Como uma comédia de fim de noite, a proposta do grupo Matamoscas Teatral em “Desempregada” mostrou-se inteligente, cômica e com sinais de profundidade. Ainda que seja perceptível qualquer coisa de insegurança no grupo, algo comum em uma noite de estreia, que foi quando fomos assisti-los, com toda a certeza aguardo ansiosamente para acompanhar os futuros projetos, pois a pesquisa de tradução da realidade social para a linguagem teatral de comédia ácida mostrou-se realmente promissora, com humor refinado e inteligente, o que indica que se continuarem nesse caminho, teremos um grupo estrondoso dentro de uns anos.
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