Spike Lee não poderia ter escolhido um melhor momento para lançar seu novo “Destacamento Blood” do que durante a onda de protestos começada após o assassinato do cidadão negro George Floyd por um policial racista de Minneapolis. Afinal, quem melhor do que Lee para discutir questões raciais, principalmente as que corroem os seus Estados Unidos da América? A morte de Floyd fez com que o mundo se lembrasse que vidas negras importam, e o cineasta nova-iorquino reforça a memória daqueles que esqueceram das barbaridades ocorridas durante a invasão ao Vietnã, iniciada em 1955, onde a morte dos negros eram usadas como estratégia de guerra, já que, apesar de serem apenas 11% da população americana à época, foram a maioria a compor o exército invasor por vezes massacrado na selva. O cessar-fogo foi definido em 1975, mas os EUA ainda não se importam com as mortes dos combatentes negros no Vietnã, e nem com as que, ainda hoje, acontecem nos conflitos em seu próprio solo.
No entanto, para além das mortes, “Destacamento Blood” discute a retórica imperialista, focada em seus próprios benefícios, daqueles EUA da década de 50 e como ela tenta se reinventar agora com o governo de Donald Trump. Para isso, o personagem Paul de Delroy Lindo a representa. Ele e seus três companheiros do pelotão Blood, Otis (Clarke Peters), Eddie (Norm Lewis) e Melvin (Isiah Whitlock Jr.), voltam ao Vietnã da atualidade com o intuito de resgatar o corpo de um antigo companheiro, o sábio Stormin’ Norman (Chadwick Boseman), que está enterrado na selva, mas também para tentar encontrar uma fortuna em ouro que eles esconderam no passado. Do quarteto, é Paul o que mais está fora dos ideais de comunhão que ele e seus amigos tinham. Agora ele é um homem amargurado, odioso, preconceituoso e eleitor de Trump, o que demonstra ao vestir o famoso boné vermelho com os dizeres: “make america great again”.
Seu comportamento é típico do estereótipo relacionado aos americanos: sem respeito com países estrangeiros e suas culturas, ignorante e que se acha superior aos indivíduos de outros povos. Isso mesmo tendo em sua memória os ensinamentos alinhados aos dos Panteras Negras de Stormin’ Norman. Portanto, Paul usa toda a retórica preconceituosa, que enfrenta por ser negro em seu país, com os cidadãos do Vietnã e até com alguns franceses que encontra pelo caminho, como em uma cena em que, por falta de conhecimento e por preconceito, joga na cara do francês Desroche (Jean Reno) o fracasso da França na Segunda Guerra Mundial.
O problema é que o comportamento de Paul leva ele e seu grupo a situações de perigo que podem custar suas vidas. Em certos momentos ele perde completamente a sanidade, o que faz lembrar o Coronel Walter E. Kurtz de Marlon Brando, em “Apocalypse Now”. O filme de Coppola, inclusive, ganha outras referências, como na cena de uma festa que o usa de tema, e quando toca “Cavalgada das Valquírias”, de Richard Wagner, no segundo ato. Com toda essa reencenação da guerra, Spike Lee pretende discutir o massacre de crianças e de mulheres pelas armas químicas e pela crueldade dos soldados norte-americanos.
Essa retratação histórica é importante, todavia ela fica em segundo plano em relação ao assunto principal do longa: a questão racial discutida através de inúmeras imagens de arquivo que mostram as reivindicações por direitos iguais. Aparecem Malcolm X, Martin Luther King Jr, Muhammad Ali e Angela Davis discursando sobre o tema. Intercaladas, há imagens do conflito no Vietnã. Dois fronts sanguinários e sem limites de crueldade daqueles que estão no poder. Lee dirige uma história ficcional se apoiando no documentário, e muda a razão de aspecto dos planos de acordo com o período que pretende descrever: durante a Guerra, os lados do quadro são estreitados, encaixotando os personagens em uma simulação de filmagem em supe-8 envelhecida. No presente, quando os amigos chegam à metrópole vietnamita e passam a reviver em suas memórias todos os acontecimentos da juventude, o widescreen e suas bordas superiores e inferiores cortadas – típicas do cinema ilusório e fantástico – é usado. Já quando eles vão à selva atrás do corpo de Stormin’ Norman e do ouro, a tela se expande e a sensação de realidade se instala. Afinal, agora não há mais elucubrações e ilusões, eles fazem parte do mundo físico cheio de perigos.
Com todo esse aparato conceitual e a situação atual do mundo, “Destacamento Blood” avulta-se. Só não é perfeito, no entanto, porque possui algumas questões mal resolvidas em seu roteiro, como, por exemplo, as diversas coincidências que fazem a trama avançar quando essa parece empacada, e a falta de função narrativa de certos personagens. A produção também é desleixada em cenas que envolvem uma pobre computação gráfica para simular ambientes. Mesmo as sequências de ação dirigidas por Lee, por vezes, são artificiais, retirando o peso dramático que poderiam conferir ao filme. São problemas que prejudicam a experiência cinematográfica, mas nada que vá tirar a força dessa obra que pode conscientizar milhões de espectadores.
Vídeo e Imagens: Divulgação/Netflix
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