O monólogo “Diadorim” foi escrito por Márcia Zanelatto, inspirado no personagem homônimo do livro “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa. A peça foi apresentada no Centro Cultural São Paulo e foi dirigida por Guilherme Leme Garcia, e a atuação fica a cargo de Vera Zimmermann. Galvão (1981) resume as informações biográficas da personagem roseana da seguinte forma:
Diadorim, sabemos por informações esparsas e oblíquas, é órfã de mãe e filha única de grande chefe guerreiro, das lutas armadas das primeiras décadas da República Velha. Vestida de homem desde a primeira infância, acompanha o pai na vida guerreira e, depois do assassínio dele, prossegue na missão de vinga-lo. Os cabelos cortados, os seios apertados por um gibão de couro, banha-se sozinha de madrugada ainda no escuro e é obrigada a se esconder no mato para tratar seus ferimentos. É exemplar de bravura, e uma bravura que se pode chamar de “masculina”, ou seja, baseada na noção de honra guerreira e feitos heroicos em campo de batalha.
(GALVÃO, 1981, p. 41)
Um personagem com poucas informações narrativas exige que a imaginação trabalhe bem na escrita de um monólogo protagonizado por ele, assim como o caráter ambíguo do personagem, algo que a dramaturgia e a direção conseguiram transformar em forma teatral. Nesse sentido, a adaptação que o público presenciou conseguiu exaltar a obra roseana por meio de uma mudança de perspectiva.
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O roteiro acompanha de perto os acontecimentos do livro, que são situados pelas falas da personagem. Dessa forma, testemunhamos o assassinato de Joca Ramiro, pai de Diadorim, sua possível paixão por Riobaldo, e o desejo de vingança após a morte do pai, entre outros eventos. Por se tratar de um monólogo, a ênfase das cenas é sempre dada à percepção de Diadorim sobre os acontecimentos que ele/a narra. Assim, nada é mostrado visualmente, mas recriado por meio de uma única pessoa no palco. As cenas em que imaginamos Diadorim nesses lugares e conversas são importantes, pois fazem a personagem expressar o que está acontecendo e o que está sentindo (algo que não é tão constante no livro). Isso situa o espectador no desenvolvimento da biografia de Diadorim, o que funciona bem nos cinquenta minutos de peça. Essa temporalidade oscila entre o que sabemos ser um acontecimento no mundo real e o que ocorre apenas na cabeça da personagem.
Essa mesma estrutura é observada na espacialidade. O espaço onde acontecem os eventos não é mostrado, mas criado apenas teatralmente pela fala ou pela presença de alguns objetos, como um casaco, uma adaga e um chapéu, que fazem referência a outros personagens.
O lugar dramático de onde o monólogo parte é a mente de Diadorim. Embora o mundo real seja reconhecível, o que Diadorim pensa e sente prevalece em algo que, em alguns momentos, é reconhecível e em outros não é. Essas transições não são anunciadas, cabendo ao público identificar de onde surge o que está assistindo e isso é muito eficaz ao retratar o caráter da personagem. A instalação cênica de Bia Junqueira, a criação videográfica e projeções de Rogério Velloso e a cenotecnia de Zé da Hora, com assistência de Ana Luiza Suhr Reghelin, Joana Iglesias Cepeda e Pedro Wagner Rivera, conseguiram criar uma ambientação plástica que funciona como se estivéssemos observando um sonho, algo reconhecível e ao mesmo tempo não claro, mas que, mesmo abstrato, não é confuso, resultando em uma estética agradável que combina bem com a peça.
A iluminação, cujos ambientes de luz são de Mirella Brandi, é bem pensada e serve de complemento ao cenário, pois guia e confunde, não de maneira psicodélica, mas iluminando o mundo abstrato que se faz presente.
A música e o desenho de som, assinados por Dino Vicente, trabalham de forma que nenhum som seja reconhecível, permitindo que o espectador pressuponha algumas coisas, mas não tenha certeza.
Em resumo, a temporalidade, espacialidade, cenografia, iluminação e sonoridades presentes no monólogo reiteram o ponto da indeterminação da personagem e sua ambiguidade, sendo bem transferidas para uma forma técnica material.
No que concerne aos personagens, o monólogo foi pensado para ter Diadorim como protagonista, mas não exclui outros personagens da narrativa roseana, que aparecem sintetizados em alguns objetos, como mencionado anteriormente, e também nos diálogos com o vazio que Diadorim cria. Em ambos os casos, Diadorim reitera sua posição enquanto homem disfarçado (ou sendo mesmo um) no meio jagunço e também no papel de filha.
As circunstâncias do monólogo são forjadas a partir dessa transição entre o falado e silêncio no mundo real, mas ganham uma dimensão emotiva que revela o medo, o ódio, a insegurança e o amor de Diadorim no universo de sua cabeça. “Grande Sertão: Veredas” é um monólogo de Riobaldo, ainda que indique a presença de alguém para quem ele se dirige, e nesse monólogo, ele relata seu amor por Diadorim, que é sempre um personagem de fundo, mas crucial para a narrativa. Quando esse texto literário se converte em um drama, em especial, um monólogo, Diadorim sai do fundo e torna-se figura principal. Tal interpenetração entre essas duas formas – literária e teatral – é o que dá a força motriz para o que acontece no palco. Diadorim não conversa com o público; pelo contrário, o que vemos é como se toda a peça fosse a narrativa. Nesse caso, vale sempre lembrar que é uma peça pra quem já conhece o Grande Sertão. Quem não conhece talvez não faça um grande proveito.
Quanto à atuação, Vera Zimmermann está impecável. Embora seja natural que, em um texto literário, o leitor crie representações mentais dos personagens que lê, a atriz faz com que seu/sua Diadorim suprima o que foi imaginado antes e assuma uma nova representação memorável. Em síntese, Vera é e será Diadorim no imaginário de quem a assistiu. Sua atuação faz esquecer que estamos no teatro e nos dá a percepção de que estamos ambientados no universo do livro, dado o grau de verossimilhança. Isso ocorre porque vemos o jeito jagunço em seu modo de andar, de falar, em suas expressões faciais e na recitação do próprio texto. Você vê, você sente, o personagem ganha vida.
O que reforça sua atuação impecável é o agradecimento da atriz ao final da peça para o público, onde todos os trejeitos de Diadorim desaparecem, e vemos literalmente outra pessoa, o que ressalta sua experiencia e qualidade de trabalho.
É inegável que o monólogo “Diadorim” é uma obra que merece destaque pela forma como consegue trazer à vida um personagem tão enigmático e complexo, inspirado no universo literário de Guimarães Rosa. A peça, que se encontra no limiar entre a literatura e o teatro, desafia o espectador a mergulhar nas camadas de ambiguidade e indeterminação da personagem, e o faz com maestria. Por fim, ao final da apresentação posso afirmar que senti um contato mais íntimo com a personagem, de modo que não há como sair incólume da plateia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GALVÃO, Walnice Nogueira. Gatos de outro saco: ensaios críticos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981.
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