O escritor britânico Hugh Lofting começou a desenvolver as aventuras do Dr. John Dolittle, famoso veterinário que consegue falar com os animais, quando ainda servia na Primeira Guerra Mundial. Após o fim do conflito, Lofting adaptou as histórias para o formato de livro e, em 1920, The Story of Doctor Dolittle foi lançado, dando início à série infanto-juvenil que chegaria a ter 15 volumes. Como é o caso com qualquer fenômeno literário, Hollywood se interessou em adaptá-lo para o cinema e começou a fazer propostas a Lofting ainda nos anos 1920.
Porém, somente na década de 1960, a primeira adaptação cinematográfica de suas obras chegou às telonas. Doutor Dolittle, filme de 1967 estrelado por Rex Harrison, foi um dos últimos suspiros do grande musical hollywoodiano, que nos anos 1950 e 60, principalmente, foi usado pelos grandes estúdios como uma das principais armas contra a televisão. Marcado por uma produção tão catastrófica que chega a ser hilária (“Cenas de uma Revolução” de Mark Harris é uma ótima leitura para quem quiser saber mais detalhes), Doutor Dolittle foi um fracasso de público e crítica e, hoje em dia, só é lembrado por ser chatíssimo (até Os Simpsons já fez piada com isso) e por uma chocante indicação ao Oscar de melhor filme, fruto de uma grosseira manipulação de votos.
O nome Dolittle ficou tão manchado que somente em 1998, uma nova adaptação foi lançada, dessa vez estrelada por Eddie Murphy e mantendo apenas a premissa dos livros de Lofting. Essa iteração, apesar das críticas mornas, foi bem de bilheteria e garantiu um batalhão de sequências (uma para o cinema, também com Murphy, e o resto direto para DVD).
Chega 2020 e com ele um novo filme baseado nos livros de Hugh Lofting, dessa vez protagonizado por Robert Downey Jr. e retomando a ambientação vitoriana das obras originais. Considerando o quanto demorou para “Dolittle” chegar aos cinemas (o longa foi rodado em 2018, mas novas filmagens ocorreram em 2019 após a má recepção do filme em sessões-teste), o natural é esperar um verdadeiro desastre. Por isso é um pouco surpreendente perceber que, apesar de estar longe de ser um bom filme, Dolittle é curiosamente assistível.
A bem da verdade, muito do longa do diretor Stephen Gaghan não funciona, começando pelo humor preguiçoso e desconjuntado. Apesar das enormes possibilidades proporcionadas por um grande conjunto de animais falantes com traços de personalidade bastante específicos, o roteiro (escrito por nada menos que quatro pessoas) dificilmente consegue usá-las de maneira criativa ou, até mesmo, genuinamente engraçada. Há uma abundância de trocadilhos e gírias anacrônicas, numa tentativa óbvia de conquistar um público jovem através do comportamento “deslocado” das personagens animais. Vez ou outra, a estratégia até funciona – por exemplo, quando Dolittle improvisa uma sessão de terapia com um tigre assassino que sofre com questões parentais, antecipando a psicanálise de Sigmund Freud -, mas no geral, ela não vai muito além de coisas bobas, como um urso polar que usa a gíria “bro” (mano, em inglês) em pleno século XIX.
Pelo lado da aventura, Dolittle também dificilmente empolga, apesar da construção de um universo potencialmente rico. Grande parte do longa se desenrola durante uma expedição do protagonista e seus amigos animais – além do jovem aprendiz Stubbins (Harry Collett) – em busca de uma árvore localizada em uma ilha onde nenhum humano jamais chegou, a fim de coletar o único antídoto para o veneno que vêm deteriorando a saúde da Rainha Vitória (Jessie Buckley). No caminho, Dolittle e companhia se envolvem em batalhas navais e perseguições em redutos de bandidos, o que, no papel, promete um filme mais emocionante do que aquele de fato apresentado.
Muito disso se deve à direção de Gaghan que, apesar de tecnicamente competente, falha em tornar os momentos de ação propostos pelo roteiro em sequências interessantes. Mesmo com um grande orçamento (US$175 milhões) e um trabalho notável, em especial, de figurino e direção de arte, que conseguem transmitir a fantasia e a magnitude inerentes ao universo do longa, o diretor aposta numa abordagem segura e tarefeira, que pouco se diverte com os elementos à sua disposição. Isso é o que também, no geral, impede as personagens de serem mais envolventes e memoráveis, incluindo o próprio Dolittle de Robert Downey Jr. Assistindo ao longa, é difícil não imaginar o que um realizador com uma identidade mais forte (ou até mesmo um journeyman um pouco mais ousado) faria com o mesmo material. Talvez não saísse um bom filme – afinal, o roteiro não é grandes coisas -, mas quem sabe algo, pelo menos, mais marcante?
Apesar desses problemas, Dolittle não chega a ser uma prova de resistência, sendo um longa irregular e esquecível, mas que consegue distrair o espectador ao longo de seus 101 minutos de duração.
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