Luis Buñuel tornou-se célebre já em sua estreia no cinema criando, ao lado de ninguém menos que Salvador Dalí, o surrealista “Cão Andaluz”. Fugindo do regime de Franco na Espanha, Buñuel se refugiou na França, onde, ao lado do companheiro roteirista Jean-Claude Carrière trouxe à tona obras como “A Bela da Tarde”, “O Discreto Charme da Burguesia” e “Esse Obscuro Objeto de Desejo”.
“Esse Obscuro Objeto do Desejo” foi o último filme realizado por Buñuel antes de sua morte, e trata do relacionamento conturbado do rico Mathieu (Fernando Rey) com a bela Conchita (Carole Bouquet/ Ángela Molina), que se passa entre Paris e Sevilha.
Buñuel, como mestre surrealista usou duas atrizes para viver Conchita, que, segundo Jean-Claude Carrière em seu livro “A Linguagem Secreta do Cinema” começou como um infortúnio, já que de última hora a interprete original não pode participar do filme. Para não atrasar a produção, Buñuel escalou Ángela Molina e Carole Bouquet, intercalando as cenas da personagem usando as duas atrizes, já que elas possuíam características distintas, mas que se complementavam, completando assim a visão que o diretor possuía de Conchita.
Por isso, contando com duas atrizes disponíveis, Buñuel teve a ideia de representar Conchita em duas extremidades: a ingênua e inocente de Carole Bouquet e a manipuladora perversa de Ángela Molina, e também fez a mistura das duas personalidades em vários momentos. Mathieu é arrebatado por essa mulher dividida em duas, ele entrega sua vida a ela, mesmo ela não se entregando por inteiro.
No mesmo livro citado acima, Jean-Claude Carrière diz que Buñuel tratava seus filmes como obras de acontecimentos cotidianos e várias cenas analisadas hoje em dia, onde se dá inúmeros significados, na verdade não possuem nenhum. Ele apenas filmava da forma que achava mais apropriado. Mas, é impossível analisar o roteiro de “Esse Obscuro Objeto do Desejo” e não notar nele vários subtextos que dialogam com o seu tempo ou mesmo com a vida do diretor.
O Jogo de dominação entre Mathieu e Conchita pode ser entendido como o embate entre a burguesia – e suas ramificações, que possui influência no governo e na justiça –, com o proletariado, que sofre a imposição do poder, mas que usa de seus artifícios para fazer valer suas vontades. Conchita manipula Mathieu, enquanto ele tenta possui-la de todas as formas. Em um momento Buñuel mostra um transeunte carregando um saco nas costas, este mesmo saco é mostrado nas mãos de Mathieu em momentos chave do filme: Como quando ele anda com Conchita na rua, ou em um hotel, após uma briga, onde deixa o saco e diz que pedirá para buscarem depois, além de outro momento, já no final, que merece uma análise maior, também no final desse texto. O interessante é que Buñuel usa esse elemento como analogia a conchita, primeiro como uma qualquer andando pelas ruas, ainda desgarrada de Mathieu, depois em seu domínio, como montada em suas costas. No hotel, ele deixa o saco aos cuidados de terceiros, como algo sem importância.
Cutucadas sucintas na religião também fazem parte do repertório de Buñuel aqui e são representadas primeiramente pela mãe de Conchita, já que a velha senhora não trabalha, passando boa parte de seu tempo na igreja. Ela entrega sua filha para o homem rico, também se beneficiando do dinheiro que ele oferece de bom grado. Diz que Deus prepara a elas uma ótima vida sem trabalho. Mesmo Conchita é dividida entre anjo e demônio em suas personalidades conturbadas, mas que possuem algo em comum: enganar o velho Mathieu. Há ainda os inúmeros atentados terroristas usados como pano de fundo da trama principal. O grupo terrorista responsável é chamado de “Grupo Armado Revolucionário do Menino Jesus”, que, evidente não possui um motivo aparente para seus atos, o que é bem similar aos grupos terroristas de hoje em dia. Eles operam baseados em leis que de tão estapafúrdias, passam a ser nulas.
Quando falamos em surrealismo no cinema logo nos vem em mente outro mestre: David Lynch. Ele usa figuras estranhas, edição truncada e fotografia estilizada. Buñuel é o oposto de Lynch, sua direção é sóbria, com travellings de aproximação, como querendo participar da cena, mas não interferindo nela. Outra não intrusa é a edição, que quase não é notada, tamanha sua discrição. Ele constrói um filme realista, com toques irreais e dá significado à sua visão sem floreios.
O filme é de 1977 e por isso algumas cenas podem soar falsas ou mesmo as atuações talvez pareçam teatrais demais para os nossos olhos modernos, além da incomoda dublagem feita em pós-produção. Contudo, trata-se de uma obra de arte, mantendo-se acima de qualquer defeito técnico que possa ser apontado.
Para finalizar, há a última analogia entre conchita e os sacos carregados por Mathieu. Em seus momentos finais, após uma das varias reconciliações do casal, Mathieu chama Conchita para olhar uma vitrine de loja. De dentro dessa vitrine surge uma senhora carregando o tal saco. Ela retira do saco varias vestimentas brancas sujas de sangue e começa a costura-las. Conchita fica transtornada com a cena, vira as costas e vai embora. O fato das roupas estarem sendo concertadas em uma vitrine é, além de surreal, revelador, como se Conchita estivesse entregue à Mathieu, “remendada” por ele, se transformando em algo que pode ser vendido ou comprado.
Tentei em algumas pobres palavras decifrar uma das obras mais importantes da história do cinema. Se Buñuel estivesse vivo e lesse esse texto talvez risse e dissesse: “Meu rapaz, que confusão que você fez, eu só queria mostrar a vida de um casal com diferença de idade”.
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