Atenção: esta é uma análise com spoilers
Na vida, às vezes conseguimos identificar marcos que nos levam subitamente de um estágio a outro, da infância à vida adulta, a uma transformação profunda. É justamente a morte repentina do pai que movimenta a história do amadurecimento de Olka em “Eu não choro” (I never cry) de Piotr Domalewski.
De início, encontramos Olka (Zofia Stafiej), prestes a fazer 18 anos, tentando, pela terceira vez, tirar a carteira de motorista. O toque do celular da adolescente, à la Kafka, grita MALDITA POLÍCIA. Há muito tempo a psicanálise relaciona a representação da autoridade máxima na figura da polícia, do Estado, do pai (ou dos pais), da Lei e, em última instância, de Deus. A ambiguidade é enfrentada desde os primeiros anos: a polícia (ou o pai) é violenta e repressora, mas é a ela que recorremos quando precisamos de proteção. O pai possui autoridade, mas também provê os meios de existência da criança. Voltaremos mais adiante a este tópico.
Olka falha novamente e sua frustração vai além do óbvio. De volta à casa, um apartamento minúsculo, ela ajuda a mãe com os cuidados do irmão que possui necessidades especiais. Neste momento em que os jovens procuram liberdade, independência e se diferenciar da própria família – ainda mais num ambiente tão limitado pela pobreza e uma vida difícil-, a promessa do pai é sua oportunidade de crescer. Tornar-se adulto, quando nunca se teve outro, é a possibilidade alcançar algum tipo de poder. Tudo que Olka deseja é simbolizado pelo carro. Não passar no teste de direção significa não ter o carro.
Mas, através de uma ligação em inglês e, portanto, com alguma luta, Olka finalmente entende: o pai acaba de morrer em um acidente de trabalho. A partir daí, a adolescente confirma o título, “Eu não choro”, e não chora diante da notícia. Como a mãe não sabe falar inglês, Olka é arremessada (não da forma que esperava) ao papel de adulta. Segue, pragmática e sem pausa, para a Irlanda, a fim de trazer o corpo do pai de volta para a Polônia onde receberá um funeral.
50 Złoty por um maço de cigarros!
Olka vai comprar cigarros e descobre que, na Irlanda, eles custam 11 euros, ou 50 zloty, a moeda polonesa (para efeitos de comparação, na data da publicação desta resenha, o Złoty valia R$ 1,39 e o euro, R$ 6,30). A austeridade da Europa oriental se choca com a prosperidade econômica da porção ocidental, para onde imigrantes pobres poloneses vão servir de mão de obra para serviços precarizados.
Após conversar com o empregador de seu pai, o agente funerário e diversos outros profissionais que dão informações sobre a morte e o corpo de seu pai, Olka se vê obstaculizada por uma burocracia intransponível: o pai morreu enquanto cumpria o horário de um amigo e, portanto, estava no local do acidente de forma ilegal. Por este motivo, a família de Olka não tem direito a um seguro para cobrir as (altas) despesas para transportar o corpo até a Polônia.
O poder burocrático que Kafka tanto trabalhou: por mais que seja absurda, a regra é esta. Lide com o que está dado. Pedido difícil para uma adolescente que já rejeita a figura da autoridade, mesmo quando ela é necessária. É significativo que Olka não consiga, por mais que tente, ultrapassar toda a burocracia que a Irlanda lhe impõe: a morte é também uma lei que não pode ser alterada.
Olga se mostra insensível. Em vez de triste por perder o pai, ela só se preocupa com o dinheiro que ele possivelmente tenha deixado para lhe comprar um carro e que agora, de acordo com as exigências de sua mãe, deve cobrir os custos que o pai provocou ao morrer. Ela não agoniza, embora desespere, a temperatura de sua trajetória é fria.
Para obter a certidão de óbito, Olka precisa fazer o reconhecimento do cadáver esmagado do pai. Em uma cena que poderia ser banal, dado que é apenas um procedimento formal, Olka visita o necrotério e o médico pergunta a Olka: Você o reconhece?
Bem, para reconhecer, é primeiro necessário conhecer.
Olka liga para a mãe, que lhe conta que o pai tinha uma verruga num local específico. É aí que está; a dificuldade não está no rosto desfigurado pelo acidente, mas no fato de que Olka não conhece o pai.
Em outro momento, o empregador de seu pai explica: tinham uma relação de patrão-funcionário. Ou seja, absolutamente não se conheciam. Notamos que não somente Olka não conhece seu pai, mas trata-se de um homem que, ao que tudo indica, ninguém conhece.
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Apesar de seus 17 anos, Olka é bastante imatura. Quando se encontra em situações sociais, não sabe se comportar, quase como se não tivesse sido educada. A ausência do pai é óbvia, mas a mãe também se ausenta da figura materna, talvez capturada pela necessidade do filho, que como mencionado anteriormente, requer cuidados especiais. Ela rouba, chantageia, usa quaisquer meios para tentar conseguir o que precisa, mas os atalhos nunca levam aonde ela quer chegar.
No último ato, a jovem vem a conhecer Sara (Cosmina Stratan), a atual companheira de seu pai (a amante, já que ele ainda era casado). Encontra, na bolsa de Sara um envelope identificado como “carro da Olka” com dinheiro dentro. O pai disse a verdade. Ela rouba o envelope – ou se apropria de seu direito de filha? A namorada está grávida (à espera de um irmão de Olka). Quem tem mais direito ao dinheiro? Encara a pergunta que lhe tira de seu autocentramento infantil: o que seu pai teria preferido? Agindo em torno dessas questões que Olka por fim torna-se adulta: aprende a negociar com o mundo, agindo de forma mais justa e não apenas baseada no que ela mesma quer. Olka decide devolver o dinheiro à Sara.
Cumprida a missão de trazer seu pai de volta para casa e realizar um funeral adequado, Olka diz ao padre: Ele fez seu melhor, ele fez o que era possível. Talvez não tenha feito o que a filha gostaria, mas ele fez o que pôde. Afinal, ele cumpriu sua promessa juntando dinheiro para o carro. Amadurecer e se entender um indivíduo passa por entender que cada pessoa tem sua própria subjetividade. Conhecer o pai – não a pessoa de seus pensamentos infantis – mas a pessoa que ele era na realidade.
O dinheiro nunca foi apenas o dinheiro (para o carro, para cobrir os custos de transporte do cadáver), mas sim a prova do esforço que o pai fazia – ou ao que ele se dedicava. Saber que ele se dedicava à promessa que fez a ela, Olka se dá por satisfeita. Mesmo numa narrativa tão controlada, sóbria e crua, a catarse vem na cena final, em que Olka finalmente chora. Mas não apenas. Olka sorri. Chora e sorri. A questão nunca foi sobre chorar, sempre foi sobre não sentir. Olka finalmente sente.
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