Antes de começar, é preciso confessar minha completa ignorância em relação à literatura de Clarice Lispector (um erro que precisa ser consertado), por isso, o que será analisado aqui é a peça cinematográfica, baseada em “Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres” da autora ucraniana, naturalizada brasileira. No cinema, o título ficou apenas “O Livro dos Prazeres”, e é dirigido por Marcela Lordy, e estrelado por Simone Spoladore.
A história é sobre Lóri (Spoladore), uma professora primária que busca no prazer do sexo com vários parceiros um sentido para sua vida, enquanto tem que lidar com a recente morte da mãe. Lóri é uma mulher livre e independente, contudo solitária e melancólica. A mãe a deixa um espaçoso apartamento com vista para o mar, o que a dá ainda mais liberdade e, em contrapartida, a envolve em uma intensa solidão. O único dos homens que a interessa é o professor de filosófica Ulisses (Javier Drolas), que vê a escuridão na alma da amante e a alerta.
Aproveitando-se de passagens da obra de Lispector, o roteiro escrito pela própria Lordy, em parceria com Josefina Trotta, cria capítulos ao filme, e cada um deles vai apontando a evolução da protagonista, que começa a entender gradativamente suas angústias, ou vai passando pela tal aprendizagem que dá título ao livro. Lóri acaba se dando conta de que o seu problema não vem do fato de ser solitária, mas da sua necessidade compulsória de sair dessa solidão. Para se libertar, também é preciso aceitar que ela não é igual às outras mulheres que conhece. Ela é como um animal selvagem que segue seus instintos.
A externalização do ser selvagem, inclusive, vem através da coleção de animais de brinquedo que a personagem possui. No início do filme, eles estão envoltos em plástico e guardados em uma caixa. Do segundo para o terceiro ato, eles começam a ser “libertados” de suas prisões, tomando conta das prateleiras do apartamento. A mitologia também serve como simbologia para a evolução de Lóri, já que seu nome vem de Lorelei, uma sereia de lendas germânicas. A Lóri de “O Livro dos Prazeres”, no entanto, nunca entrou no mar. Por isso, quando decide mergulhar solitariamente durante uma manhã, seu novo obstáculo é vencido. O único problema aqui é a necessidade do texto em colocar tudo isso em palavras – ela diz a Ulisses que finalmente entrou no mar, etc., – o que poderia muito bem ser apenas mostrado pela câmera.
Os reflexos de espelho – que criam várias mulheres dentro de um só –, o presságio da morte através de peixes agonizando e plantas murchas, e a incerteza de um futuro ou a desorganização do presente representado pelo apartamento caindo aos pedaços e com objetos e móveis empacotados, vão sendo colocados em evidência para que o espectador perceba o quão destruída é a realidade de Lóri. O alento só vem quando ela tenta colocar tudo no lugar, dos objetos externos aos conflitos internos. Com isso, o mundo se abre e a felicidade pode ser alcançada.
Este filme faz parte da programação da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Imagens: Vitrine Filmes
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