Em janeiro de 2019, o cineasta Karim Aïnouz decidiu pegar um barco, cruzar o Mediterrâneo e embarcar em sua primeira viagem à Argélia. Acompanhado pela memória de sua mãe, Iracema, e sua câmera, Aïnouz nos dá um relato detalhado da viagem à terra natal de seu pai; da travessia marítima à chegada às Montanhas Atlas em Kabylia – uma região montanhosa no norte da Argélia – ao seu regresso. Entrelaçando presente, passado e futuro em “Marinheiro das Montanhas”.
Viajar para se conhecer
No discurso que fez na pré-estreia “Marinheiro das Montanhas” na noite de 19/09, no Cine Itaú Augusta, Karim Aïnouz, cineasta e protagonista, disse que esse filme foi um ato de fé, que começou com 2 páginas de papel, com a intenção de fazer uma viagem, não muito mais que isso…
Porém, percebi nas palavras dele um certo impulso de se conhecer, de saber sobre sua ancestralidade, tentar entender seus pais, de onde veio e para onde poderia ir.
Pois durante toda a projeção de sua viagem ao país de seu pai, trouxe a ele lembranças de sua infância e uma certa celebração de sua saudosa mãe, Dona Iracema. Ela e ele, o pai de Karim, se conheceram quando estudaram nos Estados Unidos.
Sobre Dona Iracema e seu objeto de estudo que a levou à América, Karim traz em momentos distintos do filme a familiaridade do ciclo de vida das algas vermelhas (só assistindo para se ter ideia das relações montadas/trazidas pelo cineasta).
Durante todo o filme, desde que sai do Brasil, pelo caminho percorrido pelo enorme navio, viagem escolhida deliberadamente pelo Mar Mediterrâneo, segue revelando suas impressões de “turista”, juntando no documentário um diário de viagem e revelando o amor e saudade pela falta de Dona Iracema.
Karin (a intimidade deste que escreve é por causa do diretor ser o próprio protagonista e fazer a narração do filme inteiro em off) não perde tempo descrevendo o que estamos vendo e sim, seus sentimentos, suas impressões e dúvidas sobre o que vai encontrar no país e no vilarejo de onde seu pai saiu para encontrar sua mãe nos Estados Unidos, onde se apaixonaram.
A forma como ele se estabelece até subir as montanhas do vilarejo de Kabylia, as pessoas e as histórias que ouve sobre resistência política contra a ocupação francesa, os olhares desconfiados quando ele surge sempre com sua câmera, que à princípio os moradores estranham, ficam arredios, mas no decorrer do caminho, quanto mais ele se embrenha no alto das montanhas e se aproxima do vilarejo onde ainda moram os parentes do seu pai e logo dele mesmo, mais as belezas prosaicas da vida e as pessoas se aproximam para contar suas histórias, enxergando nele menos um estranho e mais um confidente, um meio de apresentar para o mundo as preocupações e agruras de se viver na Argélia atual e nos seus arredores, longe da capital.
Jovens e anciãos sem emprego, alguns sem perspectivas, mas altivos e orgulhosos da sua história de resistência.
Karim neste “Marinheiro das Montanhas” não fala só dele, fala de seus pais, de política, de resistência, do viver.
Para isso, tanto quanto às imagens que às vezes parecem “caseiras”, são envolventes e dão a dimensão de intimidade e acolhimento, os detalhes do som se destacam.
Cada passo de um morador, cada batida de panela, cada andar com bengala, é nitidamente percebido e faz ressoar no que de mais familiar se tem em uma vida vivida nas montanhas, entre os comuns, entre parentes recém-descobertos.
Uma bela maneira de viajar para se conhecer, se entender e se lembrar.
Aliás, como disse o poeta Fernando Pessoa: Navegar é preciso…
Por Roberto Rezende
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