Marginalizados, mas jamais invisíveis
A transexualidade entende-se pela condição onde o indivíduo possui uma identidade de gênero que se difere daquela que é designada em seu nascimento. Tentando simplificar, ela consiste em não se reconhecer com o corpo físico pelo qual nasceu. A partir disso, essas pessoas passam a lutar para se reconhecerem de maneira diferente a que lhes são impostas. É essa batalha diária, de afirmação e aceitação que “Meu Corpo é Político”, de Alice Riff, expõe como longa documental.
No silêncio urbano da periferia de São Paulo, vemos o dia nascer. Com ele vamos conhecendo nossos protagonistas, sem que ressoem uma palavra sequer. O ponto inicial do filme não é apresentar diretamente seus personagens. O objetivo é trazer à tela o cotidiano rotineiro que qualquer pessoa, de qualquer cor, gênero, religião, sexualidade e etc, costuma ter. Ao todo, temos quatro protagonistas que conduzem a narrativa. Fernando Ribeiro é um homem trans que tentar ter sua identidade reconhecida pelo estado. Giu Nonato é uma mulher trans que entre suas atividades está a fotografia de nu artístico como empoderamento contra os padrões de beleza. Paula Beatriz é a primeira mulher trans a ser diretora de uma escola do estado de São Paulo. Linn Santos, conhecida como Mc Linn da Quebrada, uma cantora e performer queer.
Cientes e conscientes de seus corpos e ideologias pessoais, os três rostos “desconhecidos” se unem a Lin para ressoar a importância de suas presenças. Ao ler a frase anterior, pode até soar como um narcisismo, mas a proposta da produção é bem diferente e distante disso. De maneira naturalista, na maior parte da produção, vemos aqui o nascer de um longa sobre sororidade trans. Se analisarmos bem, são pouquíssimas produções de alcance que abordem tal tema. Seja na ficção ou nos documentários.
Com o argumento de Heverton Lima e roteiro e direção de Alice Riff, o longa se traduz mais em imagens do que em palavras. O fato de não colocarem seus protagonistas para dialogarem com a câmera já o faz ser interessante. Dessa maneira acompanhamos o cotidiano de cada um, fazendo que com eles nos conquistem numa relação interpessoal, onde somos meros observadores daquela verdade. Perceber a forma com que os terceiros, ao fundo, observam os corpos socialmente marginalizados, configuram com perfeição o título “Meu Corpo é Político”. O visível incomodo e/ou deslumbramento e até mesmo curiosidade em conhecer essas personas devido seus corpos propagam a verdadeira narrativa.
O documentário de fotografia naturalista e chapada feita por Vinícius Berger traz uma dialética interessante dentro da proposta. Contudo, ele se perde quando tenta ser didático. Embora pudesse vir a ser esclarecedor aos menos esclarecidos sobre os problemas sociais que interferem na vida de uma pessoa trans, ele o faz perder sua força. As cenas que eram para ser cotidianas, são realizadas dentro de um contexto que eles vivem e revivem todos os dias e ao trazê-los a tela faz sua autenticidade e veracidade, embora real, não tenha as emoções verossímeis.
Na produção também é possível enxergar uma proximidade estética para telefilme. O que não é negativo para ele, em específico. Pelo fato do projeto ter sido contemplado com recursos para a produção na chamada Pública BRDE/FSA – Prodav TVs Públicas, em 2014, lhe dão uma outra possibilidade de propagação. Contudo, ele tem uma estética e proposta bem diferente do programa “Liberdade de Gênero” exibido pelo canal GNT. Talvez isso faça com que a produção tenha seu próprio tom sobre a luta pela expressão como pessoa, artista e ativista. Outro paralelo comparativo com a produção é o excelente “Corpo Elétrico”, de Marcelo Caetano, no qual Linn também faz parte. Assim como ele, “Meu Corpo é Político” é cativante por suas personas que se afirmam, que usam sua imagem para transgredir a sociedade, dentro de um cenário que marginalizado e periférico.
Ao final da sessão, além de uma ótima reflexão social, a produção ainda consegue nos deixar o desejo de ver mais. Tal fato pesa à ela de maneira positiva e negativa. Positiva por nos instigar a compreender e conhecer não só os protagonistas, mas as demais pessoas trans que nos passam despercebidas. E negativa, por, por exemplo, nos apresentar pouco sobre histórias tão cativantes, como a da Paula Beatriz, que podemos dizer ser a menos aproveitada. De qualquer forma, suas belas cores visuais e seu lirismo orgânico torna o longa mais uma produção necessária para exposição, debate e empoderamento.
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