A peça “O incidente”, baseada no texto de Christopher Demos-Brown, teve a sua direção e versão em português por Tadeu Aguiar. A narrativa intensa e envolvente, que esteve em cartaz no Teatro Vivo, aprofunda a discussão acerca do racismo estrutural, justiça e relações conjugais de modo magistral.
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Situada após 2020, a história acontece na madrugada chuvosa de uma sala de delegacia em que Kendra busca saber notícias do filho, Jamal, que desapareceu pela noite. Em contato com o policial de plantão, Paul, ele informa que o garoto foi parado por uma blitz policial e que não tem mais informações sobre o incidente. Posteriormente, chega Scott, pai do garoto e ex-marido de Kendra, que traz a público um casal inter-racial e aprofunda as discussões que a montagem propõe. Enquanto Paul omite inúmeras informações para Kendra, confunde Scott com o tenente John Stokes e revela a ele tudo o que sabe. Essa situação evidencia ainda mais a relação de poder mediada pelo tom da pele que ocorre naquele local. Enquanto o casal aguarda notícias do filho, nos instantes finais da peça, entra em cena o tenente Stokes, um homem negro que dialoga diretamente com Kendra, desvelando diversas perspectivas raciais acerca do incidente e encaminhando a história para seu final.
As grandes questões que norteiam os 100 minutos da peça são: Jamal está vivo ou não? O que aconteceu nesse incidente? A tensão é organizada pelo tom iminente da resposta e é consolidada desde sua primeira cena. À medida em que os episódios são transmitidos ao público, ela aumenta, ao dar importância a todo o jogo de poder racial e a diversos olhares e suposições sobre o que pode ter ocorrido. O que mais é trazido em xeque é a violência da instituição policial em relação aos corpos negros, que se manifesta verbalmente, quando por exemplo o policial Paul esconde informações e usa um tom pejorativo com Kendra, e fisicamente, quando descobrimos o desfecho da peça. Cabe sempre ressaltar que a instituição policial é apenas um sintoma de uma sociedade impregnada pelo racismo estrutural.
A peça ocorre integralmente em um escritório de delegacia, com alguns bancos e a mesa do policial. A janela simula uma tempestade, através de um mecanismo que reutiliza água. O trabalho cenográfico de Natalia Lana com o desenho de luz de Daniela Sanchez é harmônico e um deleite estético. Ambas conseguiram captar as sutilezas do roteiro e da montagem, entregando um trabalho primoroso que em momento algum erra o tom. Os relâmpagos e trovões são bem compassados e verossímeis.
O poder nessa montagem é traduzido no conhecimento sobre o que envolve os fatos do incidente e a cor da pele. Dessa forma, por mais que a hierarquia dramática dê ênfase a Kendra, interpretada de modo excepcional pela talentosa Flavia Santana, sua personagem é quem menos detém poder, tendo em vista ser uma mulher negra e quem busca a informação. O policialismo privilegia o policial branco Paul, vivido por Daniel Villas, que está abaixo do tenente Stokes, encarnado por Marcelo Dog, um homem negro. De outro lado, Scott, interpretado por Leonardo Franco, complexifica o jogo de poder por ser ex-marido de Kendra e pai de Jamal, o que o insere em um contexto desfavorecido pela ausência de conhecimento. Contudo, por ser um homem branco, está em pé de igualdade com Paul, e sendo um agente do FBI, é colocado em um nível similar ao do tenente Stokes. Em síntese, as complexas dinâmicas de poder entre os personagens favorecem a tensão racial e o acesso ao conhecimento dos fatos.
Diante dessa estrutura relacional que organiza o enredo, os quatro personagens apresentam diversos pontos de vista sobre racismo, justiça, identidade, relações familiares e a comunicação. Cada olhar sobre esses temas é conflituoso, de modo que se complexifica e aumenta mais a tensão do que está sendo abordado. Como exemplo, nos instantes finais da peça, Kendra e o tenente Stokes, ambos negros, discutem sobre o que significa ser uma pessoa negra em uma estrutura racista. Enquanto Kendra é impulsionada por seu instinto materno, sua experiência como mulher afro-estadunidense e seu desejo de justiça, favorável ao abalo das estruturas sociais, Stokes apresenta uma visão mais cética sobre isso, tendo acatado que a estrutura está imposta e é imutável, baseado em sua carreira policial, sua experiência pessoal e seu compromisso em manter a ordem pública.
Jamal, personagem extracênico que não aparece, é o objeto central da economia dramática e a partir dele todo o discurso revela, pela dialogicidade, seus traços. Enquanto os diálogos revelam diversas formas de encarar jovens negros na sociedade, a narrativa adensa-se sobre sua situação no incidente policial. É um jovem negro, de 18 anos, que ainda está experimentando quem é no mundo até que o desfecho revela que sua vida foi abreviada. Após essa descoberta, a última cena é curta e o espetáculo acaba, despertando no público o horror e a reflexão sobre os temas apresentados, que ecoam em todas as sociedades que passaram pelo regime de escravidão.
“O Incidente” é uma peça teatral profundamente comovente que destila a dolorosa realidade do racismo estrutural através de sua narrativa intensamente envolvente. Os acontecimentos do drama nos confrontam com as duras verdades que muitas vezes preferimos ignorar, proporcionando uma experiência teatral que é tanto provocativa quanto inesquecível. A peça nos instiga a questionar o status quo, desafiando-nos a confrontar as implicações do racismo sistêmico em nosso mundo e a buscar uma sociedade mais justa e equitativa.
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