“Rainhas do Crime” é um filme chocante. Não por se tratar de um filme polêmico, mas inteligente, que levanta temas controversos e provoca ricas e – inflamadas – discussões acerca de si. Não por ser um filme inovador esteticamente, apresentando novas possibilidades para o meio cinematográfico. Não por ser uma obra que choca apenas pelo prazer de chocar. “Rainhas do Crime” é um filme chocante no pior sentido: é chocante por conseguir desperdiçar tanta promessa e talento em uma trama pobre e reacionária.
No papel, a premissa do filme escrito e dirigido por Andrea Berloff tem potencial: Kathy, Ruby e Claire (Melissa McCarthy, Tiffany Haddish e Elisabeth Moss, respectivamente) são casadas com membros da máfia irlandesa que comanda o bairro Hell’s Kitchen em Nova York. Vivendo em uma comunidade extremamente machista, as três – consciente ou inconscientemente – possuem relacionamentos tóxicos, nos quais elas são relegadas a uma posição de passividade e servidão.
Porém, quando seus maridos são presos durante um assalto, as protagonistas se veem em uma delicada situação financeira, tendo dificuldades em encontrar emprego (seja por conta da maternidade ou por falta de experiência profissional) e recebendo pouco suporte dos mafiosos ainda soltos. Portanto, a única solução encontrada pelo trio para rapidamente juntar dinheiro é começar a fazer o serviço que os criminosos não estão fazendo direito: garantir a segurança e o bem-estar nas ruas do bairro usando o dinheiro arrecadado com o “imposto” da máfia. Assim, em pouco tempo, Kathy, Ruby e Claire tornam-se as principais rivais dos líderes vigentes e começam a chamar a atenção de outras facções criminosas nova-iorquinas.
A partir dessa sinopse, fica claro que Berloff pretende usar essa inesperada situação como ponto de partida para discutir questões como emancipação feminina, desigualdade entre gêneros no mercado de trabalho, ineficiência dos poderes oficial (Estado) e paralelo (máfia) em “proteger” o cidadão etc. Além disso, o ponto-de-vista valorizado pela diretora – as mulheres da máfia – abre possibilidades para debates éticos e teóricos acerca da questão: o feminismo deve ser simplesmente a possibilidade das mulheres fazerem o mesmo que os homens ou ele permite uma efetiva reestruturação socioeconômica da sociedade?
Todavia, qualquer tipo de elucubração mais aprofundada sobre esses temas é desperdiçada em uma narrativa que basicamente usa pátina feminista para defender milicianismo como forma de organização social válida pelo simples fato de “fazer as coisas acontecerem”. Com um simples sacar de revólver, as protagonistas espantam cafetões e dizem para as prostitutas pérolas como “agora vocês não trabalham nas ruas, mas sim para nós”, como se tirando-as do trabalho sexual e botando-as para serem funcionárias do crime, elas se tornassem automaticamente mais dignas, pertencentes a uma “marginalidade maior” e mais inclusiva. Óbvio que qualquer oportunidade de emprego é bem-vinda, porém a forma como “Rainhas do Crime” apresenta isso – como se só porque agora as empregadoras são mulheres, as ex-prostitutas deixassem de ser automaticamente exploradas – é, no mínimo, ingênua, para não dizer cruel.
Isso sem contar os momentos em que pessoas sem-teto são expulsas à força de debaixo de marquises como forma de “limpar” o bairro e deixar os comerciantes felizes. Claro que situações como essa acontecem na vida real e são reflexo de uma sociedade capitalista conservadora, contudo o filme é maniqueísta ao, algumas cenas antes, mostrar um sem-teto atacar a personagem de Moss. Logo, o filme aponta sobre toda uma comunidade a pecha de “ameaça” baseada em uma experiência individual para, assim, justificar a ação das protagonistas e a reação dos moradores.
Além disso, nem mesmo as personagens principais conseguem ser bem-desenvolvidas, apesar de cada uma possuir um grande potencial dramático. Mesmo se tornando uma das chefes do crime, Kathy ainda tem dificuldades em perceber o quanto a presença de seu marido a sufocava; Ruby não só era maltratada pelo marido, como também é uma negra em uma comunidade majoritariamente branca e, portanto, vê em seu aumento de influência uma possibilidade de se impor nesse ambiente duplamente hostil; e Claire, ao ver-se distante do cônjuge agressor e na dianteira do submundo do crime, torna-se uma viciada em violência. Infelizmente, apesar de alguns poucos bons momentos, esses arcos se resumem a corroborar as posições conservadoras do filme, em especial a máxima de que “mulher forte é mulher armada”.
É realmente difícil compreender a necessidade da existência de “Rainhas do Crime” a não ser bater cota de representatividade. Obviamente, é satisfatório dizer que um filme escrito, dirigido, estrelado e fotografado por mulheres está sendo lançado em dezenas de multiplexes pelo país, porém o teor do material é tão irresponsável que chega a ser triste pensar que esse é o tipo de role model que Hollywood quer disseminar e que é a esse exemplo que muitas mulheres vão ter acesso. É chocante, mesmo.
Imagens e vídeo: Divulgação/Warner Bros.
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