O ambiente comemorativo, trágico e permeado pela dor que surge do prazer parece conduzir e aproximar o texto de Mart Crowley, “The Boys in the Band”, do clássico As Bacantes do tragediógrafo Eurípedes. A peça, cujo trabalho supera em qualidade suas duas versões cinematográficas, é ambientada em um apartamento de Nova York no final dos anos 60. O texto de Crowley, em cartaz no Teatro Procópio Ferreira, possui a versão brasileira assinada por Caio Evangelista e a direção quase impecável de Ricardo Grasson.
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A narrativa acompanha uma noite com Michael, que arruma o apartamento para receber os amigos e comemorar o aniversário do dionisíaco Harold. Ao receber a ligação de Alan McCarthy, antigo colega de faculdade, avisando que iria visita-lo, Michael se vê tendo de censurar o comportamento dos amigos gays e a própria sexualidade, o que perde força com a visita de um cowboy-garoto de programa, que seria um presente do afeminado Emory para o aniversariante, e a chegada de Harold, que pouco se importa com as convenções sociais. Após uma briga física entre Alan e Emory, os nove personagens se veem em um jogo cruel proposto por Michael, onde cada um deve ligar para a pessoa que mais amou na vida. Regados a álcool, as cenas subsequentes revelam a face oculta por trás da máscara de cada personagem, aprofundando o contato deles com suas próprias verdades, seja com seus amores, seja com os que ali estão presentes.
A cenografia fixa, assinada por Marco Lima, reconstitui um belo apartamento da classe média do final dos anos 50, com um grande sofá ao centro, paredes em tom pastel, uma vitrola que marca a sonoplastia com volume moderado ao tocar músicas de época, um aparador com diversas bebidas alcoólicas. Esses são os líquidos do êxtase embriagante que produz uma alteração de estado da consciência, fator divino e terapêutico, como o público observa durante o ritual que será o aniversário de Harold. Outro objeto essencial é o telefone, cuja escolha pela cor vermelha expressa o sinal de alerta, perigo, limite, sangue (relação intrínseca com a morte), sendo a cor da alma, da libido e do coração – os três elementos que comunicam a subjetividade dos garotos quando o usam.
Complementar e paradoxalmente independente à cenografia, o desenho de luz de autoria de Cesar Pivetti vem à tona de modo criativo. A luz, que poderia ter sido optada por fixa tendo em vista ser a de um apartamento, escapa desse lugar-comum e adentra as curvas emotivas do texto, surgindo com expressiva engenhosidade ao focalizar nas cenas fulcrais do telefone, bem como ao criar outros ambientes em momentos que os personagens precisam de privacidade. A majestosa cena trágica da chuva, que marca o fim do ritual de aniversário e a entrada no sádico jogo de Michael é um espetáculo à parte. Cesar, nessa montagem, apenas reforça sua capacidade ímpar de criar luzes intimistas, que conversam com a subjetividade dos personagens, como já observado em Aquário com Peixes. Aqui, ele demonstra não apenas essa habilidade da luz externa, mas na última fala de Harold para o centrado Donald, “Turn out the lights when you leave, will you?” (algo como “Apague as luzes quando for embora, certo?”), cena que idealmente fecharia o espetáculo, se encontra a percepção de usar as luzes dos abajures, uma conjunção com a cenografia. Dessa forma, em “The Boys in the Band”, Cesar demonstra sua habilidade em manusear a luz como um recurso independente, mas também como complementar.
A maior parte dos diálogos não se resumem à orientação sexual dos personagens, mas às masculinidades que vivenciam enquanto homens gays e as relações que estabelecem entre si e suas subjetividades. Esse aspecto é observado apenas no contraste dos personagens com Alan, que tem a sexualidade ambígua e duvidosa, o que se sustenta pelo seu casamento heterossexual, mas com desejo de contar algo para Michael, o que não faz e deixa em aberto sua orientação para o público. Esse recurso é similar ao mecanismo ambíguo da máscara teatral, sinal exterior e instrumento da metamorfose provocada por Dioniso, que revela ao mesmo tempo que oculta; sob ela, encontra-se não apenas a frágil masculinidade heterossexual de Alan, mas também aspectos dos demais personagens.
Como supracitado, em um contexto de festa de aniversário, um ritual que marca a transição de um ciclo para outro tal como o dos Grandes Mistérios Dionisíacos, os personagens dançam, bebem e celebram a vida de Harold e são inseridos no afiado jogo proposto por Michael, que envolve um sistema de pontuação com base em uma chamada telefônica para seus amores. Ainda que possa ser cruel – e os personagens sabem e sentem isso conforme o jogo avança – eles não contestam o que é proposto, pois querem atravessar essa provação dionisíaca, o que inicia o ritual da retirada das máscaras.
O primeiro a entrar no jogo é Bernard, o único personagem negro, que é um bibliotecário pobre que mora com a mãe e interage com o mundo através da máscara da timidez. Sobre ele recaí o passado pós-escravista estadunidense, simbolizado por sua mãe como empregada doméstica na casa dos Dahlbeck, cujo filho era o seu grande amor. A timidez surge da impossibilidade de falar, pois denota sua condição da mentalidade subalterna que possivelmente lhe foi reforçada desde criança, o que se nota quando conversa ao telefone com a senhora Dahlbeck, com predomínio do tom de desculpas. A chamada com a ex-patroa de sua mãe é a retirada de sua máscara, o que o deixa impactado e sem reação, apenas lastimando, mas que também o liberta, para demonstrar quem ele pode ser, o que se expressa quando grita e enfrenta Michael após ser chamado de mucama por ele.
Tiago Barbosa despontou como uma excelente escolha, porque sua expressão corporal sempre contida, em conjunto a voz tímida e lamuriosa, entrega à Bernard, ainda que com poucas falas, uma interpretação louvável.
O próximo a utilizar o telefone, objeto de comunicação e morte, é Emory, o decorador de interiores de sorriso fácil, que foi agredido por Alan devido aos trejeitos afeminados. O personagem foi apaixonado por Delbert Botts quando estava na quinta série, com quem tem uma diferença expressiva de idade. Após alguns acontecimentos, é revelado para a escola que ele é gay, um ato violento que o obriga a sair do armário à força. Sua máscara, diferente da que usa Bernard, não é a timidez, mas a reafirmação da sua sexualidade a partir da desinibição, porém ela oculta sua dificuldade em lidar com as próprias emoções, o que se observa ao desligar o telefone e expelir sua raiva a todos ao redor.
Heber Gutierrez rouba a cena ao trazer o personagem Emory, cuja personalidade vibrante de “bicha afeminada” (termo aqui não utilizado em sentido pejorativo, mas elogioso) é interpretada de modo extasiante, fugindo do lugar cômico que esse tipo de personagem é tradicionalmente representado e aprofundando uma identidade que contesta isso.
A próxima cena leva Hank para o telefone. Hank é o personagem cuja máscara é a incerteza, que no fluxo da história, mesmo sabendo das constantes traições de seu parceiro Larry, o ama, tendo largado a esposa e os filhos em prol dele. É interessante notar que enquanto faz a ligação, é provocado diversas vezes por Larry, e que Alan, representação da heterossexualidade e, portanto, do mundo exterior, pede para que Hank não ligue, pois o mundo heterossexual ainda o aceitaria. Quando sua máscara cai, é aberta sua vulnerabilidade e certeza de sua escolha.
Otávio Martins está impecável no papel. Sua voz e expressões corporais apresentam ao público um elegante cavalheiro e sua interpretação, que poderia ser a de um ser humano “travado” como Tuc Watkins e Laurence Luckinbill adotaram na versão cinematográfica, é nitidamente autoral, espirituosa e de alto calibre.
Larry, próximo personagem a usar o telefone, se esconde na máscara do destemido, aquele que trai e libertino, que não pode ser acorrentado e pouco se importa com as fronteiras, mesmo as conjugais, como se observa em todas as suas falas relacionadas à fidelidade a seu companheiro Hank. Sua máscara cai antes de pegar o telefone, pois ouvir “eu te amo” o desarmou, mas enquanto realiza a chamada telefônica, faz todos os personagens ficarem tensos. A máscara cai e revela o ser humano vulnerável que é. Após as vulnerabilidades expostas, Hank e Larry vão para o quarto e podem seguir sua vida como um casal que se ama.
A atuação de Caio Evangelista é visceral, nutrida no excelente uso do palco, do corpo, da voz firme e cruel, além das expressões faciais extremamente demarcadas. Seu Larry não é debochado, é sobretudo cruel, o que faz com que a estocada recebida após ouvir o “eu te amo” seja uma das cenas mais profundas do espetáculo em qualidade artística.
O último a usar o telefone é o supracitado Alan. Como dito anteriormente, ele representa o mundo heterossexual idealizado, um homem branco, de classe média, casado e com filhos. Sua entrada no espetáculo, primeiro sinalizada pela chamada telefônica a Michael, traz consigo a ideia do típico mensageiro trágico, aquele que vem trazer a notícia que esclareceria algo, mas o texto o converte na representação da sociedade conservadora, o que se observa na sua violência física contra Emory e nas falas sempre evasivas em prol do status quo, como manifestado nos diálogos com Hank.
O texto de Mart Crowley deixa a máscara desse personagem em aberto pois, afinal, o que seria revelado: Alan é ou não gay? Independente da resposta, narrativamente o resultado é o mesmo: a força social que o oprime destrói a identidade que ele construiu para si, e se desenvolve no acirramento da personalidade impiedosa de Michael.
Caio Paduan orna bem com o personagem, entregando uma interpretação autêntica e precisa ao discreto Alan. Sua presença de palco transmite a vulnerabilidade sob tensão (porque odiado e julgado pelos outros personagens) e contribui para a riqueza assustada do papel.
A partir da importância que a primeira cena do telefone possui para a trama, pois como demonstrado é o objeto crucial para introduzir o tom trágico que a peça tem, a cenografia o insere ao centro do palco e a iluminação o focaliza, mas a cena aberta por Bernard ocorre sem a intensificação necessária, pois o ritmo acelerado atenua a carga dramática que ela possui.
O personagem Cowboy é o alívio cômico da peça. De todos os personagens, é o único sem nome, o que reduz sua identidade a uma função – um belo garoto de programa imbecil. É de se notar que ele, quase como Harold, entra e sai da história sem uma modificação, o que acontece apenas em uma das suas últimas falas, algo como: “Eu tento dar carinho, assim não me sinto um prostituto”, indicando existir humanidade naquilo que é vendido como um produto.
Ainda que o personagem tenha pouquíssimas falas, Júlio Oliveira as desempenha bem, mas é na expressão corporal e facial que reside o seu brilho. Não é necessário falar que Júlio é bonito, requisito essencial para o personagem, mas cabe destacar que além de um alívio cômico, ele consegue tornar Cowboy humano desde a sua primeira aparição, o que é um acerto grandioso por indicar que essa camada já estava ali e entregar uma interpretação acima do esperado.
O último trio que falta analisar é composto por Donald, Michael e Harold, os únicos personagens, além de Cowboy, que não utilizam o mecanismo da máscara. Esses personagens, embora tenham nitidamente diferenças, formam os paralelos afetivos maniqueístas em relação a Michael, em que Donald é o eixo estável de apoio ao amigo, desempenhando o equilíbrio narrativo, e Harold, o aniversariante, está na ordem do caos e da desordem afetiva de Michael.
Donald é o personagem mais centrado da trama. Abre a peça conversando sobre a terapia e o desejo de se afastar do “estilo de vida” que levava, algo similar ao desejo de Michael, mas pensado à luz da psicanálise, o que exige tempo e momentos de autorreflexão. Desse lugar decorrem suas poucas falas ao longo da história, pois é o personagem que mais observa e em nada interfere. É o único para quem Michael demonstra sua fragilidade, tal como a calvície, ao começo e final da peça.
Diante desse contexto, a atuação de Leonardo Miggiorin destoa do esperado do personagem. Seu Donald é reativo e encarna de modo espirituoso a energia dos demais personagens ao longo das cenas, o que parece indicar uma perda significativa de sua formação como psicólogo. Apesar disso, se foi uma escolha a construção de Donald em torno da reatividade, não há como negar a vivacidade de Leonardo em cada cena e fala, pois tal leitura retira Donald do lugar de “bom menino” e o humaniza de modo exemplar.
Harold, o aniversariante e, portanto, aquele cultuado, é precisamente o deus Dioníso. O último a chegar, mas motivo de todos celebrarem sua transição cíclica, apresenta um lado sombrio, incerto, difuso e confuso, regado ao álcool, à fala mansa, a dança, todos os elementos do culto dionisíaco. O personagem parece não pertencer a esse mundo, e suas falas carregam ironia, ambiguidade e são afiadas como uma faca, revelando sua natureza selvagem ao final da peça quando expõe toda a fragilidade de Michael.
A atuação de Bruno Narchi é tão impecável que faz parecer que o papel de Harold foi feito para ele. O torto jeito de andar, o olhar sempre debochado, as demais expressões corporais e a fala embriagante compõem um Harold divino, cuja qualidade de interpretação, excelente, parece extravasar toda e qualquer fronteira do teatro.
Por fim Michael. Toda a construção do texto o transforma em um herói trágico. Ele é responsável por organizar o ritual de aniversário/culto dionisíaco em prol de Harold, mas representado como alguém vaidoso desde o começo da peça, traço que se converte em uma preocupação excessiva com a aparência externa e pouca preocupação com a interna, o que se desenrola em seu perverso jogo, mais pensado em tom vexatório do que competitivo. Esse orgulho (hybris) o torna cego e o faz levar todas as consequências até o último minuto, sem respeitar o “nada em excesso” (Mēdén Ágan). Ao final, depois de sua exposição por Harold, quando todos vão embora, resta seu lamento nos braços de Donald: “O que foi que eu fiz?”.
Mateus Ribeiro, que recentemente interpretou Bob Esponja, solidifica-se como um ator talentoso e versátil. Demonstrou uma boa compreensão do lado metódico, vaidoso e estúpido do Michael, e dominou tão bem essas características que conseguiu incluir algo extraordinário: humor. Ainda que Michael seja cruel, Mateus consegue protagonizar situações engraçadas, o que torna mais leve toda a tensão causada por seu personagem.
Ao final do espetáculo, todos estão purificados, pois suas emoções são levadas ao extremo e liberadas, o que faz com que certamente eles não sejam mais os mesmos, algo que a segunda peça, The Men from the Boys, demonstra.
The Boys in the Band possui diversas características que permitem torna-la datada, como a evolução das normas sociais, por exemplo. Tendo em vista que questões de gênero e sexualidade mudaram significativamente desde a escrita da peça em 1960, período em que retratar personagens gays fora do estereótipo até então consolidado poderia ser transgressor. O próprio Crowley revela que essa representação o cansava, o que o motivou a escrever a peça. À época, mesmo que ele discorde, a peça marca certo ativismo.
Outro fator que auxilia na datação do espetáculo é a linguagem e as atitudes dos personagens, pois ainda que hoje pessoas gays sejam atravessadas por diversas repressões e opressões, há mais abertura para suas sensibilidades e entendimento de suas identidades, tais como políticas públicas e inúmeras representações artísticas.
Apesar disso, a direção de Ricardo Grasson não perde o panorama das questões do período, contornando essa datação e a remontando por meio do questionamento da relação com o presente urbano, complexo social e politicamente. Isso implica que ele explora e confirma o texto de Crowley, pois não há tantas alterações, mas é capaz de levar o público a questionar a nova forma da pauta hoje, valendo-se da construção e expressão teatral para reivindicar as representações de masculinidades gays contemporâneas, explorando ou problematizando essas possibilidades.
Diante de toda essa análise, o público que for assistir ao espetáculo consegue desfrutar de uma experiência teatral transfiguradora, histórica e transtemporal, mesclada entre a leveza e a tensão, com excelentes atuações e cenografia, iluminação etc. Sua estreia em um mês em que se volta a questionar a legalidade do casamento gay, ainda que não propositalmente, é representativa e cirúrgica do tipo de sociedade em que ainda se vive.
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