Em meio a intelectuais, escritores e pesquisadores uma voz chama a atenção. É uma voz fina e trêmula, uma voz fraca que se torna a voz mais forte do mundo pela força de suas palavras. Era uma figura frágil, uma senhora de idade, cabelos acinzentados e pele negra já cheia de rugas. Era a dona Diva Guimarães, uma professora, uma mulher, uma negra e principalmente uma guerreira.
Dona Diva estava no meio da palestra “A Pele em que habito”, com o ator e escritor Lázaro Ramos e com a autora Joana Gorjão Henriques. Debateu-se racismo e exclusão durante a FLIP, uma festa considerada intectualizada, mas considerada excludente. Pela primeira vez, a presença de escritoras mulheres foi maior do que a de escritores homens, e o número de convidados negros foi 30% maior que nas edições passadas. E foi nesta edição que falou Dona Diva.
Ela nasceu no interior do Paraná. A duras penas, por causa de sua precária condição econômica, conseguiu estudar em um colégio de freiras. Em um colégio que dona Diva, ainda criança, escutava uma história de que quando Deus criou o mundo ele fez um rio para que os seres humanos pudessem se banhar. As freiras contavam que os brancos, que na versão delas eram trabalhadores e esforçados, foram rapidamente tomar banho enquanto os negros, que segundo as freiras eram preguiçosos, demoraram a se banhar, e por isso sua pele era escura.
A história calou fundo em dona Diva bem como calou fundo em todos que a escutavam naquela manhã em Paraty. Mas para sua sorte, a menina que ia se tornar uma professora no futuro tinha a rebeldia como sua aliada, uma rebeldia que não deixava que ela se resignasse. Além da sua rebeldia, a grande força motora era sua mãe.
A mãe que lavava roupa para fora todos os dias para que a filha pudesse estudar. A mãe que não deixava que a filha desistisse dos estudos porque sabia, assim como dona Diva Guimarães aprendeu e como todos nós devemos aprender, que só se vence pela educação.
Talvez principal responsável pela vitória de dona Diva, a mãe. Aquela figura não necessariamente subversiva ou revolucionária, mas uma figura única que guarda em si uma força extraordinária e a doçura única, como descreveu a autora ruandesa Scholastique Mukasonga, a segunda autora mais vendida na Flip, logo atrás de Lázaro Ramos.
Scholastique, autora de “A mulher de pés descalços” é ruandesa, da etnia tutsi, a que sofreu o genocídio nos anos 90. Apesar de ser de um lugar tão distante, a história de Diva e de Scholastique tem seus pontos em comum.
Scholastique também estudou em um colégio de freiras, em um colégio que também era descriminada, não só pela cor de sua pele, mas também por sua etnia. A autora conta que para entrar na escola secundária em Ruanda teve que se converter ao cristianismo e não pode mais falar o dialeto dos tutsi. A língua obrigatória era o francês, sua língua mãe era proibida.
Assim como dona Diva sofreu humilhação por ser negra no sul do Brasil, Scholastique sofreu humilhação por ser tutsi em Ruanda. Ela compara o genocídio em Ruanda com o holocausto. “Assim como os nazistas fizeram com os judeus, desumanizavam os tutsi, humilhavam, tiravam todos os direitos que é para eles se sentirem no direito de massacrar essas pessoas, de esmagar essas pessoas. Bom, já que eles são baratas, assim eles se sentiam, se sentiam no direito de destruir um povo que eles consideravam como verdadeiras baratas, como fizeram com os judeus durante o holocausto. Desumanizavam, diminuíam, que é para depois dizer ‘Bom, essas pessoas são inferiores então vamos destruí-las’”.
Scholatisque Mukasonga conseguiu sobreviver ao genocídio e se refugiou na França, onde vive até hoje. A autora afirma que escreveu seus livros como uma forma de luto, como uma forma de superar um drama de sua vida e de seu país: “Foi a maneira que eu encontrei de fazer o meu próprio luto. De poder superar esse luto, de ter visto pessoas esquartejadas por facão, por machadinhos, enfim. Foi um drama sangrento então essa literatura de memória fez com que eu realmente fosse além e completasse o luto na minha vida.”
Assim como a professora brasileira, a escritora ruandesa encontrou na sua mãe a força para sobreviver e vencer as dificuldades. A tutsi dedica à sua mãe, Stefania, seus dois primeiros livros (“A leniência das Baratas” e “A mulher de pés descalços”), os mais simbólicos de sua vida. “Na verdade esses dois deveriam ter sido os dois únicos livros que eu escrevi, depois acabei escrevendo outros, mas talvez esses fossem já totalmente simbólicos da minha vida. Em ‘A mulher de pés descalços’ faço uma homenagem à minha mãe. Ela foi uma pessoa que sempre dizia que você tem que recusar de aderir à essa ideologia de se exterminar uns aos outros. Então na minha literatura, eu uso de algumas palavras como se fossem uma mortalha para minha mãe”.
Ainda sobre o uso da figura feminina, o uso da mãe em sua obra, ela diz que nunca pensou sobre isso, que foi algo espontâneo, mas necessário: “Eu nunca me fiz essa pergunta, foi uma coisa que veio naturalmente, veio espontaneamente, homenagear essa mãe. Escolhi esse assunto do genocídio, que é um assunto terrível, um assunto muito duro para mim e porque na verdade a mãe significa no mesmo tempo a força, mas também significa o amor, a afeição, a ternura e a doçura, e é o que a minha mãe representava. Quis com isso fazer uma reparação, fazer um testemunho dessa vida que foi a vida deles e em toda essa dureza, em toda essa dificuldade que eu tive para escrever, porque ao escrever e pensar essa memórias que para mim é como se tivesse lanças que estivessem penetrando meu corpo, porque o sofrimento foi realmente atroz como você pode imaginar. Então eu quis que tivesse essa figura da mãe que sempre foi um símbolo de doçura, de afeto para as pessoas. Por isso que escrevo sobre a mulher”.
Scholatisque escreveu apenas seis, e diz que “A mulher de pés descalços” é o livro com qual ela se sente mais vinculada. O título é inspirado em sua mãe que estava sempre de pés descalços, tinha uma personalidade de pessoa forte e estava sempre disposta a enfrentar todos os problemas, as dificuldades pelos quais eles passavam. No livro, ela sempre fala desse símbolo da mulher e da mãe, a mãe dela sempre fazia tudo para salvar os seus filhos. Então a autora simboliza essa tradição da vida que é a mulher que sempre tenta proteger os seus filhos. Ela quis manter essa imagem da mãe dela sempre ligada a esse aspecto do amor e essa mulher de pés descalços, ela é a própria mãe dela que ela via, na qual ela pensava sem parar.
O outro ponto de interseção entre a vida de Diva e de Scholastique é que as duas estavam na Flip, que inspiraram, cada uma a sua maneira, com suas palavras e seguem inspirando com suas histórias. Histórias de exclusão, de luta, de vitória e histórias que precisam ser contadas.
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