Emilia Pérez reforça que a América Latina tem muito a oferecer para o cinema o cinema mundial.
Mesmo sendo considerado um filme francês, “Emilia Pérez” traz um recorte latino repleto de simbolismos. Com 20 países, a América Latina tem construções, estruturas e culturas muito diferentes, por isso, é inevitável pensarmos o quão subaproveitadas são as possíveis narrativas que temos a oferecer ao cinema mundial. E aí, curiosamente, vem um diretor francês e mostra ao mundo um história inesperada, criativa e cativante que nós poderíamos ter contato. O longa é um dos favoritos ao Oscar de Filme Estrangeiro e já levou o “Prêmio do Júri” e o “Prêmio de Melhor Atriz“, que foi divido entre todas a protagonistas, em Cannes 2024.

Leia Também: O Poder da Palma | 10 Clássicos Inesquecíveis de Cannes
Na história, Rita (Zoe Saldaña) é uma advogada infeliz em seu emprego, numa empresa que não luta por justiça, mas encobre os crimes cometidos pelos seus clientes. Cansada de viver nas sombras, sem mérito reconhecido, e defendendo criminosos, ela recebe e aceita uma proposta inusitada. Manitas Del Monte (Karla Sofía Gascón), chefe de um perigoso cartel mexicano, contrata-a para que ela consiga que ele se torne a mulher que sempre desejou ser. Casado com Jessi (Selena Gomez) e pai de dois filhos, ele quer largar tudo, esquecer o passado e recomeçar da forma como sempre se enxergou. Quando o plano da certo, Del Monte torna-se Emilia Pérez, a protagonista título do longa.
O roteiro foi escrito por Jacques Audiard (Dheepan: O Refúgio | 2015) com a colaboração de Thomas Bidegain (O Profeta | 2009), Boris Razon, Nicolas Livecchi e Léa Mysius (Paris, 13 Distrito | 2021). Nele, o drama segue sutil, com porções de humor, e muitos questionamentos sociais, tendo como complemento suas canções, que falaremos logo mais. O desenvolvimento das personagens não pode ser considerado grandioso, mas foram muitos bem pontuados, sem excessos e com camadas expostas suficientemente para compreendermos as motivações, ações e reações de cada uma. O roteiro tem cadência, e leva o expectador não só a se sentir cativado ao que assiste, mas também segue um ritmo que prende a nossa atenção por suas duas horas de duração. Mérito esse que também deve ser dado a edição de Juliette Welfling (Instinto Materno | 2024).
Audiard também assina a direção que, ao lado da cinematografia de Paul Guilhaume (Casa Susanna | 2022), nos entrega uma estética mais crua e realista, em meio a ‘delírios’ musicais. O mais curioso desse casamento é o fato que não existe foco direcional, é como se eles apostassem em tudo, um grande caldeirão de experimentos conscientes. É comum vermos a linguagem estabelecida por uma predominância de eixos e planos. Em “Emilia Pérez” isso não acontece, eles aproveitam a ideia do musical para poder extravasar e trazer sequencias inesperadas, cortes e planos que racionalmente poderiam não funcionar, que não se encaixariam e que na tela deram muito certo. Curiosamente, eles apostam também e muitos recortes e focos de luz branca, algo que vem sendo cada vez mais ‘repudiado’ no cinema. Mais uma ousadia que funcionou muito bem.

A trilha sonora, tanto as cantatas quanto as demais composições merecem destaque. Não só por se tratar de um musical, mas por trazer poder à trama, explicitando as camadas das personagens. O drama ganhando intensidade com sua trilha original e suas canções, dão um toque de surrealismos a crueldade da vida. Amor, repulsa, remorso, saudade, infelicidade, desejo e muitos outros sentimentos e sensações vem à tona pela música. De longe a nossa favorita é “Para”, a letra pulsa em nossa mente e se torna facilmente em um dos momentos mais emocionantes do longa, dos deixando arrepiados.
Outro destaque é “Papa”, que embora não seja uma grande canção, sua importância na história pode arrancar lágrimas pelo seu contexto e o que ela representa. Camille (É Apenas o Fim do Mundo | 2016) e Clément Ducol (O Pequeno Príncipe | 2015), fizeram um trabalho belíssimo. A trilha não foi completamente liberada nas plataformas musicais, aqui é possível ouvir cinco delas. Vale também dizer que o foco não são notas altas, cantos e vozes perfeitas. É na imperfeição da voz que se humaniza e nos aproxima de suas personagens.
Leia também: Festival do Rio | Confira os Filmes Selecionados para a Première e Muito Mais!
Predominante feminino, o elenco masculino de “Emilia Pérez“, não fazem jus para serem citados, mesmo que estejam bem em seus personagens. Começando pela presença mais inusitada no elenco: Selena Gomez. Segundo informações, o diretor não sabia quem ela era até entrar no filme, após fazer o teste junto a outras atrizes. É difícil de acreditar nisso, mas não deixa de ser uma possibilidade. E, inevitavelmente, o longa se vende por ter sua imagem na tela, diferente e ao mesmo tempo próxima a sua presença em “Sping Breakers | 2017”. Dando vida a Jessi, mulher de Manitas (chefe do cartel), ela definitivamente não convence nesse ponto da narrativa. Sua interpretação se torna mais crível na segunda parte do filme, quando volta ao México com os filhos e passa a conviver com Emilia, sem saber quem ela é.
Zoe Saldaña, como sempre, grandiosa. É curioso e divertido o quão amada ela é, não só por ter estado nas maiores bilheterias do últimos anos, mas por nos fazer assistir qualquer coisa que ela faça. Tendo Saldaña, vamos ver, mesmo que possa ser péssimo. O que não é o caso. Sua Rita Moro Castro, é deliciosamente acessível, para além da personagem, como ser humano. Seus sentimentos, questões e desejos explodem na tela facilmente, tanto interpretando como cantando. Zoe solta a voz em diversos momentos do longa e tem performances ótimas. Outro ponto que sempre vamos destacar, é o peso do olhar que ela emprega às suas personagens quando não há falas.

Karla Sofía Gascón, é Manitas Del Monte e a nossa protagonista título. Aqui, precisamos fazer uma pausa rápida para agraciar a equipe de caracterização liderada por Julia Floch-Carbonel (Dogman | 2023). A transformação de Gascón em Manitas ficou impecável. Voltando a Karla, atriz trans mexicana, temos uma atuação, leve em seu drama e humor. Nessa dualidade vivida por ela, temos dois tons bem aplicados e completamente diferentes entre si. Sua própria experiencia reflete sobre a personagem, fazendo com que se intensifique e nos acerque.
Em seu desenvolver, fatalmente passamos não só a ser empáticos com o ex-chefe do cartel, como a nos perguntar sobre o nosso existir. É possível deixar tudo para trás e se tornar outro(a)? Se vivemos uma mentira, o que é real dentro de nós? Existe bondade na maldade e vice-versa? O quão dispostos estamos a sofrer as consequências de nossas escolhas e vivencias? Esse banho de questões alinhados ao texto e sua interpretação, é um deleite.
Trágico por essência, dramático em sua base e de humor sutil, o longa termina com um retrato curioso e bem latino: A Fé. Só podemos dizer isso para não dar nenhum spoiler. Sem dúvidas uma joia cinematográfica que tem tudo para, daqui alguns anos, se tornar um clássico cult, e um dos grandes títulos do cinema/gênero queer. “Emilia Pérez“, distribuído pela Paris Filmes, foi o filme escolhido para abrir o Festival do Rio 2024. Ele deve estrear oficialmente no Brasil no início de fevereiro de 2025.

Quer estar por dentro do que acontece no mundo do entretenimento? Então, faça parte do nosso CANAL OFICIAL DO WHATSAPP e receba novidades todos os dias.
Sem comentários! Seja o primeiro.