Curta-metragem de Vitória Vasconcellos foi exibido no Festival de Cannes em maio
A diretora pernambucana Vitória Vasconcellos foi selecionada para o prestigioso Festival de Cannes com seu curta-metragem “Bleed, Don’t Die”. Em uma entrevista exclusiva, tivemos a oportunidade de conversar com ela sobre o processo de produção do filme, seus projetos futuros e a importância da representatividade do Nordeste no festival.
Ártemis Proença: “Bleed, Don’t Die” aborda o relacionamento conturbado entre duas irmãs no dia em que o mundo vai acabar. Qual foi a inspiração para esse curta e o que você espera transmitir ao público?
Vitória Vasconcellos: Eu tenho duas irmãs (beijo Lu e Carol rs!) mas nosso relacionamento nunca foi conturbado como o das minhas protagonistas. A maior inspiração para essa história foi a resiliência apocalíptica das mulheres da minha vida (minha mãe, minha avô, minhas tias, amigas e minhas irmãs também). Aqui no Brasil ser mulher já é um ato de sobrevivência, o mundo não é gentil com mulheres. Eu tive a sorte de crescer rodeada por mulheres que me mostraram, especialmente em momentos de tragédia e dor, que a força que compartilhamos é o que nos cura. Com Bleed, Don’t Die, eu espero que o público sinta esse poder surreal proveniente da conexão feminina, da sororidade, como uma força regenerativa tanto na escala interpessoal como na global (mesmo que metaforicamente).
Á.P.: Como foi o processo de produção deste curta-metragem? Quais foram os maiores desafios?
V.V.: Transformador e muito muito demorado. Mas por boas razões. No começo, o projeto ia ser gravado de uma forma bem mais amadora, mas quando a versão longa-metragem passou no TIFF Filmmaker Lab eu não só pude desenvolver o roteiro como nunca antes fiz, mas também conseguimos mais apoio financeiro. Ganhamos prêmios e bolsas que atrasaram a gravação também, mas tudo valeu a pena já que conseguimos gravar com equipamentos incríveis com os quais nossa pequena equipe nem sonhava. Depois eu peguei Covid e tivemos que atrasar mais ainda, mas como eu estava vacinada foi super tranquilo e conseguimos usar esse tempo ao nosso favor.
Em termos de desafios, um dos maiores foi mostrar o mesmo mundo, gravado no mesmo final de semana, antes e depois de um apocalipse (ou seja, totalmente morto e depois, florido e vivo). Trabalhamos com o nosso colorista, Rudy Pesci, desde muito antes de gravar, fizemos vários testes e simulações. Na pós, além de Rudy, contamos também com Kieran Baker, supervisor de VFX, que foi fundamental nessa transformação. Acho que isso foi mais desafiador do que o próprio apocalipse, porque todo mundo sabe o que é natureza morta/viva, já o apocalipse é um fenômeno com bastante licença poética, por mais que o nosso tenta ser bastante realista também.
Era um projeto muito ambicioso para o orçamento e estrutura que tínhamos, mas minha maior sorte foi trabalhar com uma equipe que respondia a todas as minhas propostas audaciosas com um “beleza, vamos fazer acontecer”. Como a maioria da equipe era composta de amigos da universidade, pessoas com quem colaboro constantemente, já existia um respeito mútuo e a confiança que todo mundo estava fazendo o seu melhor.
Á.P.: Como foi a sensação de ter seu curta-metragem “Bleed, Don’t Die” transmitido em Cannes?
V.V.: Estar em Cannes é tipo ir pra Nárnia: É tão incrível que parece mentira e quando você tenta descrever para outras pessoas, as histórias são tão fantásticas que até acham que você tá ficando doido. Mas é tudo verdade. Foi um privilégio enorme levar o curta (e o projeto de longa) para o mercado, conhecer realizadores que admiro, aprender e trocar. Mesmo estando no mercado, que não tem o glamour da competição, você se sente parte desse mundo doido que é o audiovisual, o que não é uma sensação recorrente para mim nesse começo de carreira.
Á.P.: Como você percebeu a recepção dos críticos e do público até agora?
V.V.: Acho que tem sido positiva até agora, temos recebidos comentários encorajadores do público e de profissionais que respeitamos. Eu morro de medo de ficar vendo nosso Letterboxd, não vou negar. Mas tem sido incrível conhecer a comunidade dedicada e cativante de amantes de filmes gênero. Esse é meu primeiro trabalho nesse universo e tenho sentido que o curta tem sido bem acolhido por esse público também.
Essa hora de escutar a reação do público é sempre melhor do que eu espero porque em absolutamente todas as situações, eu me preparo para o pior rs. Brincadeiras a parte, quando estreamos o curta no Fantaspoa, eu tive a impressão de escutar as pessoas prendendo a respiração coletivamente durante uma parte importante do filme. Foi lindo sentir essa conexão com o nosso trabalho. Espero sinceramente que isso tenha acontecido mesmo e que eu não tenha inventado sem querer, mas como não tem como saber, vou continuar acreditando que aconteceu.
Á.P.: Você representa a região Nordeste do Brasil em sua produção. Como você acha que seu trabalho contribui para ampliar a visibilidade dos artistas nordestinos?
V.V.: Eu vejo Karim Ainouz, nordestino, estreando em Cannes um filme internacional, em inglês, que ele dirigiu lindamente e penso que quero fazer pelo nordeste o que ele está fazendo. Quero produzir no Brasil e continuar trabalhando fora, mostrando assim que podemos ir além, trabalhar com materiais diferentes, línguas diferentes. Aprendi com Karim e com vários artistas do Nordeste (não só os cineastas) que ser nordestino é entender o multiculturalismo que nos conecta de forma libertária, e não restritiva.
Tive o privilégio de atuar e dirigir curtas gravados no Brasil, Estados Unidos, Austrália e em alguns dias estarei dirigindo um na Itália, depois volto para gravar no sudeste do Brasil. Não sei se meu trabalho já contribui significativamente para ampliar nossa visibilidade, mas eu espero e luto para que sim. Faço questão de espalhar por todo canto que eu ando que sou do nordeste, indico filmes, livros, até síntese histórico eu faço para os mais desinformados. Além disso, espero que eu sirva como ponte para os artistas da minha terra que querem se conectar com profissionais do audiovisual, especialmente nos EUA.
Á.P.: Sendo diretora e atriz, como você equilibra as duas ocupações em seus projetos? Quais são os desafios e as vantagens de estar dos dois lados da câmera?
V.V.: O que me possibilita dirigir e atuar simultaneamente é um preparo intenso. Não só preparo acadêmico/técnico mas uma dedicação meticulosa na pré-produção de um projeto. Gostaria muito de trabalhar num set com outro ator-diretor, para ver as técnicas que ele/ela usa, mas enquanto isso não acontece, eu aprimoro meu próprio jeito a cada projeto. É difícil, claro. É um processo de correção, erro, correção, melhora… Ter uma equipe que confia em mim e na qual eu confio é fundamental. Eu ainda estou aprendendo como equilibrar essas funções da melhor forma, mas desempenhá-las ao mesmo tempo é uma experiência muito rica para mim.
Eu já era atriz antes de dirigir ou escrever, então enxergo o mundo por essa perspectiva. E ser ator não é bem uma profissão, é um estilo de vida. Fazer ambos é desafiador e intimidador, eu sempre escrevo personagens que acho que não consigo interpretar. Mas por isso mesmo eu sinto que tenho que tentar, que só me desafiando de forma radical é que eu vou conseguir crescer como artista. Em termos de vantagens, acho que o ator tem uma sensibilidade particular e um relacionamento íntimo com as coisas vivas e com a liberdade. Nem sempre é uma vantagem, mas acho que me ajuda a escrever de uma forma mais subjetiva e sensorial, priorizando experiência ao entendimento.
Á.P.: Quais foram suas maiores inspirações durante a produção de “Bleed, Don’t Die”?
V.V.: Bleed, Don’t Die foi diretamente (e livremente) inspirado no poema medieval de Percival ou o Romance do Graal. Eu considero que o curta é uma releitura feminicêntrica e distópica do poema, mesmo que de forma livre.
De modo geral, o jeito que Andrea Arnold trata o relacionamento entre mulher e natureza em seus trabalhos me inspira muito, e sempre me deixou pensativa. Sou muito fã de Jane Campion, e uma de nossas inspirações visuais foi Top of the Lake. A Vida Invisível de Eurídice Gusmão, de Karim, também foi estudado para a construção do relacionamento entre as minhas protagonistas. Raw de Julia Ducournau (acho que essa referência é mais óbvia) e The Hill Where the Lionesses Roar de Luana Bajrami também foram referências importantes no processo de criação.
Á.P: Você mencionou estar trabalhando na ideia de um longa-metragem. Pode nos contar um pouco sobre o que podemos esperar de seus futuros projetos?
V.V.: Estou trabalhando no tratamento do longa, e posso antecipar que, como já mencionei, a história se passará no Nordeste do Brasil. Continuará sendo inspirada pelo poema medieval Percival ou o Romance do Graal, mas também estará vitalmente ligada com a mitologia sertaneja do Nordeste, simbolizada pelo sonho que um dia “o sertão vai virar mar”. Além disso, estou me preparando para gravar um curta-metragem em São Paulo no fim deste ano, em parceria com o Instituto Stanislavski, chamado Compro Ouro. A narrativa é focada em duas jovens migrantes que tentam realizar um aborto clandestino.
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