“Grandes Sucessos”, HQ da Editora Brasa, é uma grata surpresa para o mercado literário
Para alguns, talvez seja engraçado imaginar “leitor” como uma formação, mas de fato é, e nunca termina. Claro que isso também depende dos objetivos de cada um, mas é inegável que ler é uma atividade sem fim, principalmente nos dias de hoje, quando há inúmeras versões de diversas histórias e assuntos. No final de todo ano os leitores tem a oportunidade de comparecer à muitas feiras literárias, como a Festa Literária da Universidade de São Paulo, que teve sua 25º no ano de 2023, sendo esse um dos melhores lugares para conhecer editoras novas e suas obras, a fim de explorar os horizontes da literatura.
Entre os estandes estava a Editora Brasa, uma editora nascida em 2021, focada em histórias em quadrinhos brasileiros, ainda muito nova e nichada. À primeira vista, o que mais chama atenção na produção de seus títulos são as capas: todas muito bem desenhadas, com cores vivas e em capa dura, contanto ainda com pintura trilateral, o que é muito apreciado pelo mercado literário.
O livro escolhido foi o Grandes Sucessos: Música popular em quadrinhos, de 2023, cuja premissa é bastante interessante: oito histórias de autores diferentes, inspiradas em oito músicas brasileiras. Tanto os amantes de livros quanto os de música e artes plásticas certamente ficarão encantados com essa junção, principalmente pelos detalhes já visíveis ao primeiro olhar, como a capa que remete a um disco de vinil.
Ao abrir o livro, o leitor depara-se com oito tipos de estilos gráficos muito diferentes. O traço de Lelis, que abre o livro, compõe uma história inspirada na música “Trenzinho Caipira”, de Heitor Villa-Lobos e Ferreira Gullar, e nela já fica claro que tipo de obra aguarda sua leitura. Tal revelação se dá logo na primeira página, inundada de emoções vindas das palavras, mas também dos desenhos, que envolvem as frases expressas no papel e ditam o tom da história. É difícil não se emocionar com as delicadas linhas pouco demarcadas da aquarela, que criam um ambiente de fugaz e abrigam perfeitamente a história de amor de Ramiro Cafona e Natália.
A segunda história foi feita por Roberta Nunes, inspirada na canção “Marinheiro Só”, cuja autoria é desconhecida, mas nesse livro foi atribuída à sambista Clementina de Jesus. Dessa vez os traços são mais marcados, não há cores e existe um sombreado intenso, quase bruto, que cria a atmosfera hostil que ambienta a história; as linhas expressivas evocam a materialidade necessária a narrativa, visto que possui suas raízes em um episódio verídico da história brasileira, a Revolta da Chibata.
A terceira HQ, tirada da música “Balada do Louco”, de Arnaldo Baptista e Rita Lee, foi escrita por Jéssica Groke, cuja narrativa parece algo que Rebecca Sugar escreveria; no geral, seu estilo é interessante pelas sobreposições de imagem, uso de páginas inteiras, e pelo jogo entre o “colorido vibrante” e “preto e branco”, que agrega sentido há história e retoma a psicodelia da música dos Mutantes.
Os traços de Eloar Guazzelli, que vem a seguir, vão na direção oposta da HQ anterior, trazendo calma por meio de suas linhas finas e pontilhadas que apresentam o Rio de Janeiro a partir da música “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes. Essa narrativa retrata a cidade maravilhosa através de cenas, recortes, como em um filme; a “câmera” observa o passarinho no ombro do Cristo Redentor da mesma forma que ele observa a cidade, a praia e as pessoas, também o céu, a comida e os pequenos detalhes guardados no Rio.
Agora há um salto para uma história ainda mais psicodélica do que a “Balada do Louco”: “Apenas um rapaz latino-americano”, de Álvaro Maia, baseada na música de mesmo nome do cantor Belchior. É possível considerá-la a mais intensa do livro todo, tanto pela narrativa em si, que já carrega um peso próprio, como pela maneira não convencional com que Maia trabalha as cores e desenha os personagens, algumas vezes até beirando o grotesco, o que pode causar uma estranheza ao leitor, um incômodo, que o deixa constantemente em alerta, assim como o personagem principal da HQ.
A sexta história foi escrita por Line Lemos e tem inspiração em um dos maiores clássicos da música brasileira, a canção “Evidências”, escrita por José Augusto e Paulo Sérgio, mas nacionalmente conhecida nas vozes de Chitãozinho e Xororó. Aqui, retornamos à aquarela, mas utilizada de uma forma completamente diferente de Lelis: os desenhos são bem mais marcados e as cores são mais vivas, deixando-os mais lúdico; essa HQ une uma diagramação mais próxima dos quadrinhos de ação com o intimismo trazido pela técnica de pintura, o que corresponde bem à narrativa apresentada, onde há história principal (romântica) e a história secundária (ação).
A penúltima história chega ao leitor com traços mais simples e uma estética mais adolescente, que lembra, inclusive, a série de livros “Querido diário otário”, de Jim Benton. Escrita por Lila Cruz, e baseada na música “País Tropical”, de Jorge Ben Jor, essa história é um clássico clichê romântico construído em desenhos preto e branco que deixam a HQ ainda mais simples, a fim de demonstrar, suponha-se, como podemos achar boas histórias até nos dias mais comuns.
Por fim, o livro termina com a emocionante e surpreendente história de Gidalti Jr., inspirada na música “Adocica”, de Beto Barbosa. Aqui também há o uso de aquarela, como em Lelis e Line Lemos, mas de uma forma muito mais realista, tanto pelo traço, quanto pelas cores, que acompanham essa proposta. Foi muito interessante a forma com que o autor selecionou o que estaria nítido dentro da imagem, pois isso cria uma clara percepção de importância para o que está em foco, guiando a leitura da história. A narrativa e os desenhos em si são muito maduros e muito bem relacionados, essencial para uma história como essa, que toca em questões problemáticas da sociedade e ainda oferece um final digno de um minuto de silêncio para contemplação.
O livro Grandes Sucessos: Música popular em quadrinhos foi, de longe, uma das melhores leituras do ano de 2023, o que é muito feliz, visto que o mercado consumidor de HQs brasileiras ainda não é muito vasto e possivelmente guarda A Turma da Mônica como a grande referência do gênero. É claro que o Maurício de Sousa é um dos nomes mais marcantes dessa literatura no Brasil, mas hoje ela vai muito além dele e de um único público. Dito isso, a Brasa Editora foi uma grata surpresa, e o livro resenhado pode ser encontrado aqui.
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