Embora historicamente o Brasil tenha uma produção oscilante de histórias quadrinhos, tanto em quantidade de títulos quanto qualidade, curiosamente o gênero terror sempre foi muito forte dentro da nona arte. Desde os grandes clássicos das décadas de 1950 e 60 que revelaram verdadeiros mestres até as publicações independentes e fanzines, o terror sempre esteve presente nas produções brasileiras de HQs.
E confirmando essa tendência histórica a editora Draco lançou uma coleção especial organizada pelo editor Raphael Fernandes onde diversos autores são reunidos sobre um tema central. A estreia em 2015 contou com histórias dentro do universo de “O Rei Amarelo”, criado por Robert W. Chambers. A HQ foi um sucesso tão grande que conquistou o troféu HQ Mix de melhor publicação mix. No ano seguinte veio “O Despertar de Cthulhu” em Quadrinhos, o qual trataremos nesta resenha. E fechando a coleção de antologias foi lançado o último volume sobre os “Demônios da Goetia”, de MacGregor Mathers e Aleister Crowley.
O conceito da coleção está em reunir histórias em quadrinhos curtas de diversos autores sempre relacionadas ao universo criativo de algum grande ícone do gênero Terror. Outro aspecto que caracteriza os livros é a impressão em duotone, onde o P&B básico se funde com uma cor predominante em cada volume, amarelo no primeiro, verde no segundo e vermelho no último. O resultado é realmente interessante.
Em O Despertar de Cthulhu em Quadrinhos o tema central se foca no universo fantástico desenvolvido por H.P. Lovecraft, um dos maiores e mais influentes autores da literatura de terror de todos os tempos. Nascido na cidade de Providence, nos EUA, em 1890, suas produções que misturavam ficção, fantasia e terror foram publicadas originalmente ao longo das décadas de 1920 e 30. Os contos desse mestre eram solidamente embasados em deuses cósmicos ancestrais formado por entidades como Cthulhu, Azathoth, Nyarlathotep e Yog-Sothoth, além de outros elementos como a cidade mítica de R’lyeh e o livro maldito Necronomicon. Com isso seu universo se tornou tão amplo quanto rico, tornando-se objeto de desejo para diversas adaptações ao longo do tempo. É justamente aí que surje um problema, pois os livros de Lovecraft não possuem descrições detalhadas das criaturas, levando o terror muito mais ao nível psicológico do que gráfico. Portanto o cuidado ao produzir adaptações visuais, como quadrinhos e cinema, deve ser intenso.
Neste volume da coleção Draco temos 8 histórias em quadrinhos, algumas mais fiéis ao universo do criador, outras nem tanto. Devido à diversidade de adaptações entre os autores selecionados, vamos passar por cada HQ separadamente.
O Salmo do Sangue Antigo (Dudu Tavares)
Essa HQ é bastante fiel ao estilo de Lovecraft ao situar pessoas comuns diante de um universo muito mais amplo do que suas mentes poderiam conceber. A partir dessa premissa se inicia uma sucessão de insanidades terríveis. O interessante aqui é verificar que o terror levecraftiano funciona em diversas situações e tempos, que não o original do autor.
Os Tambores de Azatoth (Antonio Tadeu e LuCas Chewie)
Essa HQ faz um mix criativo de fantasia e realidade ao usar como personagem principal o físico norte-americano Robert Oppenheimer, o criador da bomba atômica. Mais ainda, o roteiro coloca o bruxo Aleister Crowley em um diálogo mais do que inusitado com o físico, onde ambos procuram uma solução mística para algo terrível que surgiu junto do desenvolvimento da bomba atômica.
Macio (Airton Marinho e Fabrício Bohrer)
Uma pequena cidade foi tomada por uma estranha enfermidade, mas ao invés de buscar por cuidados médicos, os habitantes relacionam os acontecimentos a um teste divino. Apesar da premissa interessante o desenvolvimento do texto foi superficial e as artes poderiam ser mais realistas a fim de transmitir com mais ênfase a sensação de terror.
Insana Luz (Caiuã Araújo e Marcio de Castro)
Mais uma HQ que se utiliza do recurso de indivíduos comuns chegando a um vilarejo para descobrir que o desaparecimento de uma equipe de cientistas pode ser algo muito mais grave do que imaginam. Os autores optaram por uma narrativa que exagera nos absurdos e na insanidade dos acontecimentos, levando a um resultado muito interessante.
Clhithmaek’ tyivh (Lucas Pereira)
Aqui dois antropólogos partem em visita a uma tribo isolada no interior da Amazônia para estudar um antigo ritual secreto, porém as situações com que se deparam poderão ser catastróficas para ambos. A abordagem narrativa sem rodeios vai direto para a ação e violência, como uma boa história de horror deve ser.
A Linguagem da Fé (Raphael Fernandes e Samuel Bono)
Por conta de uma crise emocional causada pelo desemprego, um homem acaba se afastando de seus familiares e amigos ao mesmo tempo em que se vincula a um culto prá lá de obscuro. A mistura de elementos insanos de Lovecraft ao tema delicado das religiões, aliada a uma arte expressiva, gerou uma das melhores HQs dessa antologia.
Caso da Truta Salmonada (Jun Sugiyama, Daniel Bretas e Hilton Rocha)
Esta é a adaptação mais peculiar do álbum, pois abusa do conceito de teatro do absurdo. Um sushiman, cansado de sua rotina, trabalha em um restaurante onde se serve frutos do mar para criaturas vindas das profundezas do oceano, muitas delas com aspectos de animais marinhos. Apesar da situação bizarra que a história entrega, o desfecho passou um pouco distante do típico terror inominável de Lovecraft.
O Que Dorme (Bárbara Garcia e Elias Aquino)
Mais fiel aos contos lovecraftianos, essa HQ traz uma jovem que se sente deslocada na pequena cidade em que vive. Entretanto os acontecimentos seguintes vão provar que ela é a única que está apta a enfrentar as insanidades iminentes.
O Despertar de Cthulhu em Quadrinhos acaba não sendo um material tão profundo em termos de universo do escritor, portanto pode decepcionar os fãs mais exigentes. Por outro lado, o capricho da edição encadernada e a interessante solução das artes em duotone entregam um material realmente belo. Junto dos outros dois volumes publicados pela editora Draco forma uma bela coleção.
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