Mulheres tristes é o C@c#t#!
Eis que em plena quinta estou a caminho da Lapa, no Rio de Janeiro, para assistir a um show intimista com músicas “deprê”, muito famosas há 40/50 anos atrás, interpretadas por duas drag queens. Parecia um programa mega chato falando assim, né? Mas foi exatamente o contrário e a minha alma de velho queria glorificar de pé, mas o nervo ciático não deixava.
Bom, vamos à realidade agora. Fui conferir o show “Minhas Mulheres Tristes: Uma Ode Furiosa Ao Samba-Canção”, com Sara Lola e Nina Paola, no Bar Semente. No repertório, não faltavam clássicos: “Errei, Sim” de Ataulfo Alves, “Vingança” e “Judiaria” de Lupicínio Rodrigues, “Segredo” e “Fim de Comédia” de Herivelto Martins, “Lama” de Núbia Lafayette, “Negue” e “Último Desejo” de Noel Rosa e “Bandeira Branca” e “Que Será” da (Queen) Dalva de Oliveira.
Quando começou o show… eu não vou contar porque, afinal, ninguém gosta de spoilers, mas houve uma situação surreal. O show continuou e percebi que minha alma velha havia possuído meu corpo e passei a cantar todas as músicas que conhecia. A simpatia de Nina Paola Bellohombre e Sara Lola BemDeu, da família Oleanas e Baganas, contagiou a plateia, que acompanhava o show que ganhou versões diferentes das canções de rádio.
Parte das transformações musicais e, claro, o desenvolvimento do show, dá-se também pela presença dos músicos Pedro Barbosa e Zeca Bertucci, que na verdade respondem pelos nomes de Petra Babosa e Bridgitinha Carlota, respectivamente. Como tudo na vida que é bom dura pouco, o show passou rapinho e chegamos ao fim com “Meu Mundo Caiu”, da Maysa, mas de tristeza só a trilha, afinal, sorrisos não faltaram.
Então, eis que conversei com elas rapidamente porque era quinta, estava ficando tarde, e a sexta não seria fácil. Assim, combinamos de fazer uma entrevista exclusiva para o site da Woo Magazine, que vocês conferem agora. Nela, tem um pouco de tudo: desde a formação da dupla poderosa à opinião delas sobre o atual movimento drag. Sem mais delongas vamos à entrevista!
Paulo Olivera: Como nasceu Sara Lola BemDeu e Nina Paola Bellohombre? Quem são os artistas, os criadores que dão seu corpo, mente e alma, para as poderosas criaturas?
Sara: Um dia acordei num salto, um pouco sem ar, em 2010. Fiquei tentando relembrar passo-a-passo os acontecimentos do sonho. Depois de amarrar o novelo da experiência que acabara de viver, chamei Alessandro (na época ainda não tínhamos Sara e Nina) e contei tudo. No sonho, eu havia posado para uma campanha de uma grife famosa, não como Gabriel, mas travestido. A campanha foi lançada e a personagem feminina da campanha virou uma estrela. Outras grifes começaram a ligar e procurar a personagem para posar em outras campanhas. O sonho se desenrolou de uma maneira surreal que a personagem virou uma grande artista sem que o público soubesse que eu estivesse por trás da história. Acho que havia assistido há pouco tempo aquele filme Simone. A questão é que quando acordei, tinha esse nome na cabeça, Sara BemDeu. Naquela época, eu e Alessandro participávamos de uma pesquisa comum sobre impulsos humanos, sobre fluxo-livre, sobre um desenvolvimento de expressão com consciência sobre a consciência e consequentemente sobre os limites da expressão a partir da consciência. Confuso? Explico melhor: por exemplo, uma criança, um menino decide brincar com uma boneca, mas alguém o impede e diz que aquilo não é coisa para menino. Logo o menino entende que se ele é menino, há coisas que são para ele e outras que não. Assim, ele limita seu leque de possibilidade interativas com o mundo. Sua consciência passa a ser um cerceio de sua expressão. Nessa época desenvolvemos uma performance chamada O manifesto do Bicho. Depois, mais a frente no tempo, seguindo com as pesquisas, desenvolvemos Ode ao que não tem nome, uma performance sobre identidade de gênero, sexualidade e fobias relacionadas a esses temas. Foi um rebuliço, mexemos em histórias sofridas, histórias difíceis. Foi um belo trabalho! Em 2014, morávamos numa casa vizinha a da estilista Leni Simão. Ficamos muito amigos e vez ou outra fazíamos performances na casa dela. Montávamos um figurino juntos e criávamos uma improvisação. Um dia ela nos propôs fazer um catálogo para ela, posando travestidos com as roupas de sua grife. No dia das fotos estava lá Sara BemDeu, daquele sonho de 2010, posando num ensaio fotográfico para uma marca de roupas.
Nina: A Nina é uma hipérbole minha, é um nome doce com um sobrenome pitoresco, uma mulher belo homem. O espanhol Bellohombre é pela grande paixão que tenho pela música mexicana. Sinto a Nina uma artista mexicana. Depois das fotos que fizemos com a Leni Simão, Sara e Nina se encontraram pela primeira vez. Ficamos todos impressionados em ver como era um encontro mágico. Há nelas uma referência na outra, como se fossem a mesma pessoa, lados de uma mesma pessoa. As pessoas são múltiplas, não é mesmo? Elas se complementam, são almas-gêmeas. Lola e Paola foram nomes agregados posteriormente, quando fizemos no começo de 2016 o filme Berenice Procura (que será lançado ano que vem), da Eh! Filmes e direção de Allan Fiterman. O Allan escreveu os papéis para nós. Foi um grande presente que ganhamos nessa profissão. Além de uma experiência artística incrível, trouxemos muitos amigos para o presente, além, claro, de receber um batizado: Sara Lola e Nina Paola.
PO: “Minhas Mulheres Tristes” vai além de um show e/ou um espetáculo, dada a interação de vocês e interpretação das músicas. Como nasceu a proposta da apresentação e porque fazer essa ode ao samba-canção?
Sara: A proposta foi basicamente um empurrão! Nós estávamos começando a ensaiar um outro espetáculo (que vamos estreiar depois que completarmos Minhas Mulheres Tristes) e Nina surgiu com a notícia bombástica “Temos uma pauta no semente para daqui uma semana, vamos fazer o Minhas Mulheres Tristes lá!”
Nina: É porque já era um espetáculo que eu tinha muito claro na minha cabeça. O Atenta é algo que estamos criando aos poucos, vai ter música autoral, demanda mais tempo de produção. O Minhas Mulheres Tristes vem do afeto, das músicas que ouvia meu pai tocar na vitrola aos domingos, vem da paixão pelas primeiras mulheres da minha vida, pela minha mãe, por minha avó. É uma homenagem às mulheres corajosas que bradaram seus sentimentos corajosamente numa sociedade regida por homens. Mulheres que se desavergonharam e expuseram suas feridas, seus sentimentos. Eu já tinha o nome do espetáculo e uma relação de mais de 20 músicas. Propus à Sara e à Petra Babosa (nosso diretor musical, Pedro Henrique Santos Barbosa) e eles foram quase que obrigados a participar! Petra é uma criatura de outra planeta, um gênio. Compreendeu a irreverência da proposta e fez arranjos precisos para o tipo de clima que queríamos trazer para o espetáculo. Queríamos acalorar as músicas e aproximar o samba-canção a nossa realidade. Eis que surgiu um desafio a mais: Sara teria outro trabalho durante toda a semana de estreia, o que complicaria os ensaios e, inclusive, atrasaria sua presença no dia da apresentação. O resultado você conferiu assistindo ao espetáculo!
PO: É visível que, ainda que tenham looks bem parecidos, ambas possuem personalidades diferentes e usam de trejeitos e maneirismos de voz muito tipico das cantoras dos anos 40 e 50. Essas características são realmente pessoais ou foram estudados para esse show?
Sara: Eu tenho uma relação peculiar com a música. Amo. Fiz violão, teclado, bateria na infância. Não segui com nenhum instrumento. Cantava todas as musicas das princesas e implicavam comigo por isso. Parei de cantar. Meu pai e tios foram criados com música e esporte, tenho um tio guitarrista e meu pai é saxofonista. Minha irmã nasceu um canarinho. Fiz o primeiro semestre na Escola de música Villa Lobos, mas encruei na música. Fiquei travada. Quando Nina propôs o show, surtei. Cantar revoluciona todo o meu organismo, é uma experiência muito forte. Com a falta de tempo para preparar o espetáculo, acabou que durante a temporada mesmo e os ensaios semanais fomos adquirindo mais refinamento. Por exemplo, Nina dirigiu movimentos – somos ambas bailarinas, mas ela tem muita mais experiência com direção de movimento, além de ter pesquisado as movimentações e os timbres daqueles cantoras – e paralelamente eu tive a grande sorte e prazer de trabalhar com duas professoras incríveis, as também cantoras Luiza Borges e Muíza Adnet, que me ajudaram muito na construção do espaço vocal da Sara para este espetáculo.
Nina: Estudei musica por muito tempo, fiz conservatório de música e estudei como louco música erudita. Aprendi a respeitar os estilos de cada obra, os sotaques e acentos de cada língua. A dança clássica também me ensinou a prestar atenção nos estilos e épocas de cada obra, claro que o teatro veio para revolucionar tudo isso. Em Minhas mulheres tristes achei necessário manter os estilos dessas cantoras, suas entonações e suas formas de cantar e afinar a voz. Precisava da graça e afinação primorosa de Aracy de Almeida, da voz de Cristal desafiadora de Dalva de Oliveira, do drama de Linda e Dircinha, do escracho de Linda Rodrigues, da elegância de Dolores Duran, dos graves e do desespero de Maysa, misturamos tudo isso com a irreverência de Sara e Nina para criar um espetáculo cheio de nuances. Foi um estudo que já estava bem estruturado em mim por tanto escutar e buscar saber sobre essas cantoras durante toda a minha vida. Lembro que ainda por volta de 1995 eu fiz, na faculdade de teatro, um trabalho Sobre Dalva de Oliveira. Então, ja me atentava a esse tema. Sara e Nina tem personalidades distintas e o trabalho foi trazer essa forma de ser destas mulheres para a contemporaneidade de Sara e Nina. Então o que quero dizer é que, sim, estudamos muito.
PO: As músicas do repertório, de maneira geral, são sobre o amor e suas desilusões, com bastante sofrimento mesmo que em tom de brincadeira e arranjos bem diferentes. Vocês já sofreram por amor a ponto de colocar, por exemplo, “Errei sim” para tocar e chorar cantando junto? Se sim, conte-nos mais sobre isso.
Sara e Nina: Nós temos uma história já de 9 anos, o que você acha? (Risos) Já colocamos música até na hora de fazer as pazes e chorar juntas.
PO: Saindo dos meios LGBTS e conquistando o público geral, como Sara e Nina enxergam o envolvimento e difusão das Drags, hoje, na cultura brasileira e carioca?
Sara: Existe um movimento que vem se configurando no Brasil e que ganhou a alcunha de Desbunde. Acho maravilhoso, é um desbunde geral! As pessoas vestem o que querem, expressam sua identidade de gênero, sua sexualidade sem os padrões normativos do binômio masculino/feminino ou hétero/homo. Com certeza, a cultura drag é a mãe desse fenômeno, afinal a drag é exatamente o exagero da expressão de gênero. A gente não pode temer mais ser quem se é, sabe? Chega de intolerância, de conflito por falta de respeito ou aceitação das diferenças. No nosso caso, acredito que ganhamos força justamente por não querer rotular nossa arte ou definir nossa capacidade de expressão ao nome. As pessoas ainda tem um mal hábito, um vício cultural entranhado na memória de se preservar daquilo que é diferente de si, “lugar de mulher é na cozinha”, “menino tem que usar azul e brincar de carrinho”, “lugar de pobre é na favela”, “preto de alma branca”. Isso tudo precisa ser radicalmente combatido. Não dá mais para seguir sem uma drag em sua vida!
Nina: O importante na verdade é o respeito ao outro e a admiração pelo que ele é. A sociedade precisa ainda de quebras mais fortes em seus alicerces. O rótulos são muito prejudiciais. Um artista drag põe em cheque todos os rígidos alicerces sociais e provoca o olhar do outro. Ser Drag é um ato artístico de guerrilha social mesmo, e que se torna um ato politico. A naturalização da drag na sociedade é algo que vem sendo conquistado porque não podemos mais regredir socialmente, entende? É necessário fazer este trabalho para que a sociedade não se enrijeça novamente e destrua as conquistas das minorias, e digo todas as conquistas que vem sendo alçadas desde quando Channel vestiu uma Calça, ou Simone disse que “não se nasce mulher, torna-se mulher.” Vejo com olhos benéficos os desafios atuais das drags na sociedade. Porque é uma luta social que vai muito mais longe, que extrapola o gueto gay. Porque para mim Nina é uma arma potente apontada para todo e qualquer preconceito, é um espelho que reflete a cara real de quem me olha, isso é maravilhoso. E ela só precisa ser quem ela é, e falar sobre o que ela acredita, e assim as barreiras vão afrouxando. É ótimo.
PO: A temporada do Bar Semente chega ao fim na próxima quinta (27/11), mas o que o público pode esperar da dupla em breve?
Sara: É verdade, a temporada chega ao fim no Semente nesta quinta, dia 27. Mas conversamos com a Aline (dona do Semente) e teremos um encerramento do show este ano ainda lá outra vez. Afinal, começamos lá com o show este ano, tem sido muito bom e ainda queremos tocar muito naquela casa. Então, ficou decidido finalizar o ano com chave de ouro e fazer 5 espetáculo de encerramento dias 17 e 24 de novembro e dias 1, 8 e 15 de dezembro.
Nina: Além disso, a Simone Mazzer nos convidou para substituir ela na abertura do espetáculo Buraco da Lacraia Cabaret on Ice, que acontece nesta sexta, dia 28, a partir das 22 horas no Buraco da Lacraia, na Lapa. Faremos um pocket show do Minhas Mulheres Tristes. Estamos fechando datas de uma temporada no Kult Kolector, na Olegário Maciel, na Barra, ainda este ano. E Sara e Nina possuem uma investida na gastronomia. Estamos, por hora, vendendo nas praças da cidade os Quitutes de Sara e Nina. Sem glúten, sem lactose, uma maravilha! Sábado, 29, estaremos na praça São Salvador!
Sara e Nina: Aaaaaaah, e estamos nos preparando para a gravação do álbum de Minhas Mulheres Tristes!
Meninas, em nome de todos nós, da Woo Magazine, agradecemos a entrevista e desejamos muito sucesso! Caso queiram acompanhar as novidades mais de perto, vocês pode seguir as meninas no Instagram ou na FanPage do Facebook. Para terminar, deixo aqui o recadinho que a Sara e a Nina mandaram para nossos leitores, em nosso Instagram.
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