Façamos um exercício breve: Quais são as histórias de romance que lhe vêm primeiro à cabeça? “Romeu e Julieta“? “De Repente 30“? “Se Eu Fosse Você“? A última novela da ViihTube? Gostando ou não do gênero, a trama de um casal que se apaixona (ou redescobre o amor) de maneira improvável é tão velha quanto a língua, mas… quais são os efeitos dessas narrativas em nossas vidas? Para procurar essa resposta, “Sasaki to Miyano” será o mediador dessa conversa, que é também um convite a todos os apaixonados de plantão.
E então todos viveram felizes para sempre
Que tal mais um outro teste de referências: Entre as histórias de formação do leitor, sim, os contos de fada e de princesas, qual é o fim ideal da mocinha? Na esmagadora maioria dos casos, um final feliz está quase sempre atrelado a um casamento, ao menos nas estórias mais tradicionais. Por outro lado, na literatura, a grande explosão de narrativas sobre desilusão se deu, pensando a partir da Europa, no século XIX: é daí que saem as heroínas entediadas e suas histórias de traições como em “Madame Bovary” (1856), “O Primo Basílio” (1878) e o clássico “A Força do Querer” (2017).
Assim, uma livro médio do período vai envolver um casamento desgastado, uma protagonista desiludida com as promessas de uma vida de paixão intensa, sem fim e vida de aventuras, e o julgamento moral — frequentemente com morte — pelo adultério. A mocinha trágica é mais que um lembrete de quais as consequências para quem quer fazer o que não deve: é também um espelho do leitor, que provavelmente cresceu consumindo histórias cheias de romances cor-de-rosa.
Quem é o culpado? A mulher? O rapaz? A instituição casamento e o capitalismo? As respostas devem variar de acordo com quem e quando se pergunta. Entretanto, ainda que seja uma discussão relativamente recente, não são poucos os trabalhos no cinema e música que lidam como, além da criação, a cultura tem impactos profundos sobre a idealização de mundo.
De volta ao Japão
Pode ser verdade que o Brasil tem influências fortes europeias e estadunidenses, mas em se tratando de oriente, se esperar que as discussões estejam a mesmo pé e que a sociedade reaja da mesma maneira a algo simples como clichês é uma armadilha comum. O Japão, cheio de facetas, país entre o futuro e a tradição, só se abriu para o ocidente, deve-se lembrar, a partir da segunda metade do século XIX — época também que a homossexualidade, graças à influências estrangeiras, ganhou contornos extremamente negativos, de tabu.
É aqui que a história começa.
Sasaki to Miyano (2022) é uma adaptação do mangá do mesmo nome e conta a vida de Miyano, primeiranista, e Sasaki, segundanista, numa escola só para garotos. Após uma virada inesperada, a dupla se une e encontra um ponto em comum: Os mangás Boys Love. Ao que isso constrange o mais novo, ambos irão aprender um com o outro que não precisam ter vergonha daquilo que gostam — inclusive se isso se trata de alguém do mesmo sexo.
A premissa da obra é extremamente simples, e o primeiro e segundo episódio dão ares a reforçar a impressão de um romance clichê, sem ir muito além, porém, conforme o enredo progride, o anime dá mostras de dois feitos difíceis dentro do romance japonês em anime: Desenvolver um casal sem apelar para dinâmicas não saudáveis e ainda fazê-lo tratando a homoafetividade.
Não há rivalidades, vilões de novela das nove ou crises de ciúme com desejo de controle — e nem precisa: os maiores inimigos de Sasaki e Miyano são a si próprios e a pressão sobre suas cabeças de se aceitarem como são. Esse aspecto, no entanto, fica nas entrelinhas e não é abusado a ponto de tornar o clima pesado e empacar a progressão dos fatos, pelo contrário, em alguma medida, o ciclo social dos garotos é bem receptivo, o que é capaz de fazer até mesmo o telespectador mais cético esquecer dos problemas práticos na vida real.
A entidade “yaoi”
Para alguns pode ser uma surpresa, porém a maior parte dos autores e do público de obras focadas na relação entre dois homens são mulheres. Garotas escrevem para outras garotas, e muito já se discutiu das implicações disso, mas se há algo de relevante em se trazer ao centro da questão é, em razão dessa tendência, as obras yaoi, como são chamadas aqui, quase nunca representam um casal gay de forma condizente com a realidade. É aí que entram os estereótipos, a projeção feminina sobre um dos membros do casal — geralmente o mais frágil e “afeminado” — violência física, psicológica e sexual que dificilmente seria aceita em um mangá shoujo, para as meninas jovens, e que entram então nesse gênero coringa, onde vale tudo.
Relações não consensuais — e isso é um eufemismo — são frequentes em Boys Love, termo mais utilizado no Japão, e esse fato marcou toda uma geração que teve o primeiro contato com o gênero através de, por exemplo, “Junjou Romantica” (2008). Ainda que existam exceções, tal como “Lesson XX” (1995), são raríssimos os casos em que um casal assim tem direito a uma história sem umas vinte e sete violações às Convenções de Genebra — e isso é sobre você mesmo, “Koi suru Boukun” (2010). Quer dizer, até 2016.
“Nascer para fazer história”
O ano é 2016, fala-se de pouca coisa na comunidade otaku senão do lançamento de Re:Zero, um dos maiores sucessos da década. Um dos poucos acontecimentos capazes de, ainda que por alguns instantes, roubar os holofotes foi o crescendo dramático de “Yuri!!! on Ice“. Não parecia fazer sentido, mas se tratou de uma aposta alta que deu muito certo, o que não seria possível sem muito investimento, divulgação, uma consultoria afiada em patinação no gelo, animadores preparados e uma trilha sonora marcante.
Yuri!!! on Ice teve seus diversos méritos, entretanto, a principal glória provavelmente foi romper barreiras de nicho. Se antes majoritariamente eram as garotas que consumiam esse tipo de trama, homens não LGBT também se viram interessados e até torcendo pelo casal Yuri e Victor, o que contribuiu para figurar como um dos animes mais populares e levar o prêmio de anime do ano pela Crunchyroll.
É importante dizer que não foi Yuri!!! on Ice que inventou a roda: praticamente junto veio “Doukyusei“, inclusive mais explicitamente LGBT que YoI, em 2015, e “No.6” em 2011, que também teve seu relativo êxito dentro de uma bolha. Foi seu sucesso, porém, que permitiu que outros títulos com relacionamentos muito mais positivos aparecessem na mídia, alguns reproduzindo o feito em alguma escala: “Banana Fish” (2018), “Given” (2019) e “Umibe no Étranger” (2020) a título de exemplo.
Sasaki to Miyano, de alguma forma, é herdeiro desse legado e, ao que o mangá base para a adaptação é de 2016, coincide com um momento de maior valorização para BLs acessíveis a todos os públicos. Na trama, ambos também gostam de BL, ponto que a audiência deve ser capaz de se identificar, e estão bem conscientes dos clichês que essas histórias carregam, e isso é usado a favor como uma autocrítica também de Sasamiya; ainda que reunindo os estereótipos mais prováveis — o garoto mais alto e masculino e o mais baixo e delicado, o receio de se declarar para outro homem, etc. — os estudantes decidem conscientemente deixar essas fantasias de lado e aproveitarem a paixão de um pelo outro como qualquer outro casal de Ensino Médio — não é esse um direito de todos, afinal?
Nesse sentido, Sasaki to Miyano é um romance comum ao qual devemos estar familiarizados, sem qualquer ato narrativo revolucionário. A carência de histórias saudáveis do tipo — e esse é o ponto mais triste — é que torna esse um anime especial, que quiçá há de contribuir para mudar um estereótipo tão marcado: que todas as tramas que envolvam um casal “desviado” da norma, tenham que envolver necessariamente perversão e tragédia.
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