Não é de hoje que tradução é um assunto que gera polêmica, tratando-se então de gênero e sobretudo quando essa noção vai além da dualidade “homem” e “mulher” tem-se prato cheio para uma discussão — nem sempre respaldada cientificamente — típica dos tempos modernos. Esse artigo pretende falar um pouco de gênero neutro e história da sociedade ocidental e japonesa, para além do lugar comum e zombaria, sem que isso se proponha como um ponto final à discussão, mas uma reflexão sobre o papel da tradução e como tendências pacificadoras, ou disruptoras, podem atravessar a obra de modo a reforçar o que se diz ou reescrever o material original.
Cante para mim, musa…
É comum se apontar no início da discussão de uma matéria a etimologia daquilo que está sendo tratado, em direção à evolução das palavras ao longo da história — devendo-se manter em mente que os significados estão o tempo todo em disputa. Se originalmente “gay” tinha o sentido de alegre ou “lésbica” o sentido de “aquela de Lesbos (ilha grega)”, “típico de Lesbos”, em referência à poetisa clássica Safo, conhecida por seus poemas de amores entre mulheres, isso tem mais valor histórico para compreensão do passado e o presente, enquanto fruto desse, do que de fato a definição cristalizada que esses termos receberam no mundo, sobretudo na sociedade ocidental, como uma orientação sexual, afinal, esses vocábulos estavam mais associados ao que se enxergava clinicamente como um desvio do que de fato a uma questão identitária.
Quando olhando mais a fundo o léxico circundando a diversidade de gênero e sexo, seja em inglês ou português, não é difícil verificar que as origens remontam fortemente ao grego antigo e latim, mas o sentido moderno é na verdade muito recente, decorrente de uma longa história de luta e dos estudos antropo e sociológicos. Por que saber disso importa? Em poucas palavras, mesmo se conversando com alguém do início do século XIX sobre esses temas tabu, o uso de “gay” ou “lésbica” não teria a mesma conotação que tem hoje em dia, quiçá faria o remoto sentido para uma comunidade originária americana ou asiática, com seus próprios sistemas de crenças e valores.
Indo ao cerne da questão: para a linguística, como a língua não é uma reprodução do mundo — e portanto as palavras para um mesmo objeto são diferentes, pois são arbitrárias (árvore, tree, δένδρον, 木, ağaç, etc.) — pode-se esperar que para sociedades diferentes tenham termos diferentes para o tratamento de sexualidade e gênero. Por exemplo: é sabido que várias sociedades pré-colombianas tinham uma classificação de gênero (e não sexo) que ia além do binômio masculino e feminino, coisa essa que foi convenientemente apagada da história ao passo que esses povos eram assimilados à cultura cristã/europeia. Assim, conceitos relativamente modernos podem soar anacrônicos a depender do enquadramento, pois, tratando de algo tão artificial como o comportamento humano, não há de se esperar que essas construções se dobrem da mesma forma no Brasil e no Japão.
Afrodite eterna de etéreo trono, / Filha de Zeus que urde enganos, peço- / Te: com mágoa e náusea não domines, / Dona, minh’alma,
Nesse trecho de Ode a Afrodite, de Safo (circa séculos VII e VI a.C.), o eu lírico feminino pede à Deusa para que aplaque sua dor por um amor homoafetivo não correspondido. Tradução de Leonardo Antunes (2009).
Entre dois mundos
O Japão é um caso curioso de lugar que mistura tradição e modernidade — em Your Name (2016), de Makoto Shinkai, essa é a temática principal, afinal, o conflito de gerações e as contradições que nascem desse choque. Até a era Meiji, marcada pela abertura da nação ao ocidente, o Japão era tolerante com a homossexualidade e sua representação, com suas devidas ressalvas.
O teatro tradicional japonês, o Kabuki, teve de se adaptar à proibição da participação de mulheres nas encenações, apesar delas estarem ligadas às origens da prática, sob alegação — procedente — de que muitas atrizes estavam envolvidas com a prostituição, o que levou a substituição dessas por outros homens — como em Atenas clássica, na qual homens, cidadãos, faziam papéis masculinos e femininos — na verdade garotos jovens (若衆, wakashuu)… coisa que não resolveu o problema e levou ao banimento dos wakashuu por um breve período.
Consoante ao que com maior robustez em raízes indo, americanas ou mesmo na mesopotâmicas, a distinção de gênero binária da língua possui maior turbidez, afinal, trata-se de um contexto no qual os limites entre “homem” e “mulher” estão bem estabelecidos, mesmo na fala, o que vai de completo choque ao tratamento social recebido pelos wakashuu, ao passo que não era incomum que as cerimônias de passagem fossem propositalmente atrasadas pelos mestres para que pudessem continuar a ter relações socialmente aceitas com os aprendizes, que não eram, se portavam ou vestiam como “homens”, porém tampouco mulheres.
Apesar da tolerância, essa dinâmica estava por mudar após a abertura do Japão ao ocidente, com algum grau de maior alinhamento com a moral ocidental e os estudos de sexologia da época, a condenar a homossexualidade e minorias de gênero. Em uma cultura tão atravessada pela divisão entre o considerado masculino (男性語, danseigo) e do feminino (女性語, joseigo), a língua tinha — e tem — importante papel na prescrição comportamental, e o processo de modernização do Japão incluía, assim, o apagamento daquilo que fosse alienígena ao mundo à Oeste de Istambul.
Tradutor, traidor
Ao contrário do português, o japonês não possui marcação gramatical de gênero: portanto “kyoushi” (教師) pode ser tanto professor (profissão) quanto professora, o que não implica, como já foi discutido, que não existam categorias de gênero — como no inglês, em que handsome (bonito) é exclusivo para homens.
Em razão disso o autor de uma obra pode fazer a escolha de não marcar claramente essa distinção que se daria, por exemplo, em português. Um dos casos mais relevantes para essa questão são as adaptações polêmicas de Shingeki no Kyojin, em que o autor apresenta Comandante Hange Zoë como personagem chave na obra, contudo, seu gênero não é propositalmente claro no mangá e Hajime Isayama orientou as traduções para que preferissem mantê-lo, como fizeram as versões em inglês, optando pelo uso do they singular. Nas línguas neolatinas, em que o gênero neutro evoluiu em mescla ao masculino (salvo o romeno), optou-se pelo uso do feminino, visto as dificuldades de manter uma neutralização o tempo inteiro e soar corriqueiro, casual.
No anime de Shingeki, Hange ganha traços menos andróginos e referências femininas, tanto que se pode falar da existências de dois Hanges diferentes em razão disso. Paralelo a isso pode se pensar na tradução da DiC de Sailor Moon para os Estados Unidos, na qual, entre algumas mudanças, Sailor Urano e Netuno, casal lésbico na original, foram colocadas como primas, ou a mudança do gênero de Zoisite (homem gay) e Fish Eye (crossdresser), todas censuras para tornar a animação mais receptível ao público ocidental.
Já em Hoshiai no Sora, um entre os membros do clube de Soft Tênis escolar, especificamente quem administra, Yuu Asuka confessa o sentimento de não conformidade com seu gênero, de modo que tanto suas irmãs quanto o protagonista adotaram o nome Yuu, mais neutro, em oposição ao seu nome de registro. Embora a marcação pronominal em terceira pessoa não seja tão forte no japonês quanto em português ou inglês — isto porque ao invés de dizer ele/ela/they, ficar reforçando “彼” (kare, ele) e “彼女” (kanojo, ela) pode soar como um vício de linguagem — traduções devem se orientar a tomar essa nuance no momento da travessia ao idioma-destino, como o emprego do they singular.
Uma questão espinhosa
É senso comum que tratar de tópicos de gênero seja algo espinhoso para a maior parte das sociedades, porém outra questão tão delicada, embora não pareça, é o tratamento linguístico do preservar da norma culta. Como assim? Bem, a título de exemplo, a gramática normativa é bem clara quanto a proibição do uso culto de pronomes oblíquos átonos no início de sentenças, ou seja: deve-se empregar “ajude-me” e não “me ajude”, consoante com o que faz Portugal, muito embora o Brasil tenha preservado uma forma mais antiga que era mais recorrente à época de Camões, mas posteriormente revertida pelos próprios portugueses.
Quando tratando da mescla do neutro com o masculino no português geralmente se ignora que esse fenômeno foi um processo longo e que para chegar no português atual há outras fases, como o latim vulgar e o galego-português — nesse, por exemplo, escrever “mia senhor” era correto, uma vez que a palavra “senhor” só viria a receber a flexão muito mais tarde. Esse processo ainda continua e não é homogêneo: algumas palavras passaram por ele mais recentemente, como “mestre” e “presidente”, outras podem causar estranheza, como “valenta”, que é aceitável em catalão, mas não em português.
Indo para o Século XVI, como “u” e “v” eram letras indistintas, “luve” foi grafada como “love” para não haver confusão na escrita, uma ocorrência que gerou mudança na pronúncia. No português, todas as palavras do latim que tinham “pl”, “cl”, “fl” sumiram e tiveram mutação no som; “pluvia” virou “chuva”, de forma que pluviosidade é uma adição tardia decorrente de um cultismo, inserindo sequências de sons que não eram parte do idioma até então.
Mas por que falar de todos esses eventos separadamente? O que isso tem a ver, afinal? Veja, embora seja tão claro quanto a água para a linguística, não é de conhecimento comum na sociedade que a língua é um produto vivo e que a gramática normativa não é a língua, ao menos da forma como é produzida e processada pelo falante nativo, sim um registro possível dessa.
A variedade linguística está presente em todo canto do dia a dia, o uso daquilo que é chamado vulgarmente como “pronome neutro”, embora corrente não é um lugar comum na linguagem, então as traduções tendem a evitá-lo tanto por esse elemento quanto para se evitar polêmicas. O que ocorre é que seja na tradução ou no cotidiano, o uso de uma linguagem “neutra” passa muito além de um pronome ou morfema neutro, e pensar em outras realidades — isto é, alteridade — seja pelo passado da língua ou do outro lado do mundo pode ajudar a compreender — ou ao menos levantar o debate — envolve o porquê de alguns assuntos serem tabu e porque algumas mudanças linguísticas são encaradas com maior ou menor torcer de nariz.
Esse artigo não se propõe então a ser uma apologia à linguagem neutra, ou em última instância uma pedra sobre a discussão, até porque há muito o que se tratar para além de espantalhos e noções pouco científicas sobre o funcionamento da língua, mas um convite para se pensar a língua e a forma como nos relacionamos possui tantas minúcias.
[Se sou] senhorita ou anfitrião, isso não importa
Trecho de “Sakura Kiss” de Chieko Kawabe, abertura de Ouran Highschool Host Club, tradução própria.
Quer estar por dentro do que acontece no mundo do entretenimento? Então, faça parte do nosso CANAL OFICIAL DO WHATSAPP e receba novidades todos os dias.