De repente, eu me vi ali, perdido naquela selva de estranhos. A paisagem era deslumbrante, mas ao mesmo tempo assustadora. Aos poucos, os meus olhos foram se acostumando ao lugar. Vi mulheres bonitas, mulheres de corpo bonito, mas não exatamente perfeito, mulheres na tenra idade, mulheres de beleza passageira, mulheres com pouca roupa e mulheres desnudas da vergonha de exibir suas celulites, suas estrias, os sinais da idade ou da qualidade de vida. Homens e mulheres sem defeito aparente, sem aspecto carente e gente sem dente. Não importava se tinham ou não dinheiro, não vi desespero, só vi alegria. Todo propósito era alegria, diversão naquela imensa faixa de areia tendo o morro ao fundo. Aviões pousando e decolando no aeroporto. Navios transatlânticos rumo ao oceano, pescadores e catadores de mexilhão em busca do seu sustento. Eu me vi sozinho no meio daquela multidão.
O sol ardia na pele e eu vacilava entre a necessidade de um banho e a repulsa de mergulhar naquela água imunda e cheia de entulho. Era tanta sujeira que parecia realmente uma sopa de entulho. E como se não bastasse pensar assim, um garoto que passava à minha frente gritou: – mãe, tem até cebola! Mais à frente eu também vi tomate, pimentão e vagem.
As pessoas, porém, estavam contentes: “A água tá uma delicia!” – diziam aqui e ali. O grito das crianças dentro d’água era infernal e havia pouco espaço para caminhar na areia.
Além disso, temi entrar na água porque estava só. Não tinha com quem deixar meu relógio, meu celular e a minha carteira com documentos. Mas eu precisava de um banho. Estava exausto. Sem me dar conta, eu tinha caminhado por mais de sete horas em ritmo rápido e não sabia direito como chegara até ali.
Tirei a camiseta e, com todos os pertences na mão, segui caminhando o longo percurso da praia, um pouco na água um pouco na areia, fugindo das ondas mais altas, tentando não molhar o meu cabelo, me esquivando de tropeçar nas crianças pequenas e não ser atropelado pelas maiores.
Agora molhado, saí da faixa de areia, no fim da praia. O banho de água doce custava R$ 1,00 e eu não tinha uma única moeda no bolso. Meus últimos trocados foram gastos comprando um quarto de melancia que eu comi de forma selvagem no caminho e duas paçocas. Tinha consciência de que não comeria mais nada nos próximos dois dias, pois o dinheiro que seria o meu sustento não havia sido depositado na minha conta. Isso era uma das poucas coisas de que eu tinha certeza.
Pedi a Deus que fosse comigo. Tentei descansar um pouco. Me pareceu melhor dormir de dia, aproveitando que estava cercado de pessoas, e ficar acordado à noite. Porém tive medo de ter o meu cartão de banco roubado. Levantei do banco e fui percorrer o parque em busca de uma árvore frutífera, pois, não queria pedir nada a ninguém. Não encontrei nada. Quando fui em busca daquele lugar pensei encontrar muitas mangueiras, o que não aconteceu.
Não havia água potável, não de graça. Logo comecei a sentir a minha pele ressecada, minha garganta seca, o meu cabelo duro, o meu pé sujo e, enfim, meu aspecto estava horrível. E pensei: como é fácil virar mendigo, um morador de rua ou coisa parecida. Eu precisava manter tanto quanto possível a minha lucidez, para não perder o que restava da minha dignidade.
Foram três dias indo e voltando entre um lugar e outro, ora em busca de água ora em busca de comida ou de descanso ou de um banheiro decente. A roupa começava a ficar suja. O tempo passava devagar.
Quando o sol do primeiro dia foi embora eu temi os perigos da noite. As pessoas que ficaram ali já tinham mais tempo que eu, estavam acostumadas e notava-se uma cumplicidade entre elas e, ao mesmo tempo, temi ser confundido com elas ou o pior: me tornar uma delas. Demorei a perceber a presença da polícia. Me senti um pouco seguro, entretanto temi ser reprendido por eles se eu adormecesse. À noite o mar era negro e a faixa de areia era um imenso vazio iluminado. Talvez fosse seguro dormir ali, todavia, tive medo de ser confundido com um bêbado ou um vagabundo. Dormi debaixo da sombra de uma pequena palmeira, onde passara parte da primeira tarde. Não havia formigas. No entanto, depois dormitar por várias vezes, acordei assustado com o sobrevoo de baratas. Eram muitas baratas. Levantei e fiquei vigilante. Havias algumas pessoas pescando. Não conseguia dormir sabendo que pessoas continuavam passando por ali. Não sabia quem podia ou não me fazer mal.
Água era o meu único alimento. Tinha medo de perder a lucidez, mas ao mesmo tempo a minha cabeça era uma confusão só. Tudo o que eu sabia era que tinha me manter vivo nos próximos dois dias e até lá buscar um lugar seguro pra dormir e alguma comida. Achei que poderia me manter com a carne do coco que as pessoas compravam pra tomar a água e depois jogavam fora, mas logo na segunda vez que rasguei o coco na pedra fiquei enjoado dela temendo ser percebido pelos “moradores” do local, tentei me aventurar fora do parque. Mas logo percebi que os perigos eram maiores. A noite é o paraíso dos malfeitores e eles ficam a espreita de suas vitimas. Passei por situações de perigo iminente, vi homens em atos libidinosos e vi mulheres como instrumento de armadilha do malfazejo. Os “moradores” fazem desse perigo a sua segurança e juntando-se em grupos, dormem a sono solto. E se sentem “em casa”. O corpo estava cansado, as pernas doíam e as distancias começavam a ficar invencíveis. Entretanto, eu precisava das sombras das árvores para ter algum descanso, da aparente tranquilidade do parque para fugir dos perigos da noite, precisava de água para beber, o que só encontrava em supermercados e já me sentia indigno de entrar no shopping para ir ao banheiro.
Na segunda manhã, eu acordei sem fome. Mesmo assim, eu fui rodar o parque em busca de alimento. Encontrei uma maça enorme, intacta, provavelmente sobra de um evento que tinha ocorrido no dia anterior. Limpei-a e fiz dela o meu café da manhã.
Mais tarde, ao retornar do supermercado com uma garrafinha com água gelada, deparei com um ajuntamento em torno do corpo de uma mulher de aproximadamente quarenta anos que havia se atirado do oitavo andar do shopping. Segundo os comentários, não foi crime nem acidente. Foi suicídio mesmo. Eu me perguntei: teria ela uma razão maior do que a minha para acabar com a própria vida?
À noite, depois rodar pelas ruas em busca de um lugar seguro, acabei adormecendo no meio da praia. No dia seguinte, acordei assustado com o revoar de pombos sobre o meu corpo estendido na areia. Um avião estava pousando e sol ainda não havia surgido. Pelo segundo dia seguido, eu apreciei aquele belo espetáculo. Não havia truque de cinema. Segundo a segundo vi o sol emergir de dentro do mar, bem na entrada do oceano, com a sua cor incandescente, banhando toda a costa e encantando a todos que quisessem contemplá-lo. Vi pessoas agradecendo aos céus por tanta beleza.
Era mais um dia para correr atrás de comida e descanso, de um banho doce. Mais um dia pra pensar na vida, pra me manter distante dos colegas de solidão. Mais um dia pra esperar pelo dia seguinte, pra tentar começar a vida de um jeito diferente. Não me importava mais com o medo e sabia que com o tempo eu superaria também a vergonha. Aliás, do que eu teria vergonha? Se o meu passado se mantivesse oculto, eu não teria do que me envergonhar. Na verdade, eu não tinha nada pra me envergonhar ou pra esconder. Talvez quisesse apenas esquecer o meu passado, para não continuar sofrendo. Não queria ser alguém sem passado, apenas queria poder projetar o meu futuro sem interferência de terceiros. Eu havia escolhido não sofrer, nem por mim nem pelos outros. Contudo, ao mesmo tempo, nada podia ser ignorado. Eu havia sido acusado de ser um matador de sonhos e não havia suportado isso. Por isso, eu saí. Saí caminhando a passos largos enquanto ruminava os termos daquela acusação. Precisava refletir sobre as minhas veredas, e sobre o peso daquelas palavras, sobre como deixar aquelas veredas amargas, e buscar as doces veredas que me levassem ao refrigério. Precisava embarcar nas asas da alva para encontrar a mim mesmo, para encontrar a paz. Queria que a paz estivesse em mim mesmo. Porque no fundo, o que eu queria mesmo era ter paz quando voltasse pra casa.
Por Ivo Crifar
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