Fenômeno dos anos 90 nunca deixou de sair da boca de qualquer apaixonado por anime
Hoje vamos falar dele, finalmente. Amando ou odiando, “Neon Genesis Evangelion“, ou só “Evangelion” (Eva, para os íntimos), é o grande título indispensável para aquele que quer se aprofundar no universo otaku. Não estamos aqui para gritar “Laerte, eu não entendi”, viemos para confundir — já há vídeos demais explicando o final de Evangelion por aí — na nossa série de animes clássicos o nome não poderia ser outro. Vem com a gente falar um pouco sobre seu reset cultural e entender um pouco de seu fenômeno.
Como aviso prévio, esse artigo se refere à série original, composta por 24 episódios mais um filme que dá fim à saga. A série rebuild pode ser abordada em outro momento, mas já temos uma crítica do último filme aqui na Woo.
Deixe-me ver como é a primavera em Júpiter e Marte
A humanidade ainda se recupera das consequências de um evento que ficou conhecido como “Segundo Impacto”, onde uma grande explosão de energia impactou o equilíbrio de todo o planeta Terra. A humanidade vive escondida em cidades como Tóquio-3, uma versão subterrânea a hipermoderna da grande metrópole japonesa.
Leia Mais: Animes Clássicos | Yuri!!! On Ice
Para piorar, por alguma razão seres alienígenas misteriosos começam a atacar o planeta quinze anos após o dito armagedom. A esperança para o fim da calamidade são os robôs gigantes “Eva” (ou “Evangelion”), projetados pela obscura empresa NERV, comandada por “Gendou Ikari”.
Gendou manda seu próprio filho, do qual se manteve distante por toda a criação, o tímido “Shinji Ikari” para assumir o comando dessas máquinas, que agem como bestas e exigem compatibilidade com o piloto. Além de mandar um adolescente de catorze anos à batalha com o futuro da humanidade em suas mãos, Shinji possui uma depressão crônica incapacitante, mas é o único que demonstra compatibilidade com o robô Unidade-01.
“Torne-se uma lenda”
“Neon Genesis Evangelion” faz parte de uma lista não pequena e recorrente de títulos com opiniões fortes da comunidade, e como nada é simples nessa vida, não poderia ser diferente para um projeto ambicioso que busca, no fim das contas, falar sobre a experiência humana no único lar que conhecemos.
A essa altura não é surpresa para a maioria que Evangelion não seja sobre robôs gigantes, mas sobre “sentimentos humanos” — e colocando dessa maneira, em uma discussão que já foi tanto revisitada, parece deboche, mas vale apresentar a questão como ela vem sido colocada em debate pela comunidade, e se isso virou um clichê, é um pouco reflexo dessa influência
Há duas importantes quebras no roteiro da série. A primeira ocorre por volta do episódio 14, quando há uma mudança de tom que transformam-na em um anime diferente, o que vem a ser ainda mais extremo a partir do episódio 20, equiparável ao delírio do protagonista no sétimo capítulo de “Memórias Póstumas de Brás Cubas”; é uma grande viagem em ácido, até literal.
Até a primeira metade, portanto, o público é exposto a um anime com dinâmica de “monstro da semana” a ser enfrentado, e que parecem não levar muito a algum lugar. Shinji tem que aprender a conviver com outras pessoas, vai morar com “Misato” e “Asuka”, e tenta levar uma vida normal dentro do possível, destarte sua debilitação psíquica.
É aí que Hideaki Anno transforma sua depressão em arte e segue intrigando espectadores quase 30 anos após a exibição original: Evangelion é uma colcha de retalhos, um prato cheio para quem quer bancar o detetive e gosta de recolher pistas novas a cada vez que reassiste. O mais impressionante é como a produção foi capaz de entregar um produto de aclamação crítica e popular com o orçamento de uma coxinha e um guaravita.
A descida em espiral rumo ao inferno de Shinji é proposital, mas não haveria de ser entregue como foi. Animação em rascunhos e tela branca, várias cenas de flashback, ou a infame cena do elevador do episódio 22 com 53 segundos estáticos, decorrem pura e simplesmente de falta de orçamento.
Não por acaso é necessário um filme, lançado um ano seguinte (1997), apoiado pelo sucesso da obra, para explicar o final da saga. Enquanto o final do anime é uma representação artística e conceitual sobre o fim da humanidade, o filme “The End of Evangelion” mostra as coisas mais as claras, sem que recorra menos a simbolismos, no entanto.
Um reboot da franquia foi lançado em 2007 e deu início a uma tetralogia que só se encerraria em 2021 com o último filme. Seja quais forem as motivações originais por detrás desse reavivamento, refazer a obra sem as limitações da época foi citado como um dos motivos justificando sua existência.
Feita essa digressão, o “Eva clássico”, pelo próprio autor, apesar de seu carinho, sofre dificilmente conciliáveis problemas de produção. Ao que se cria todo um charme e nova estética com questões de roteiro — que a esse ponto viraram memes pela comunidade e foram que abraçados, mesmo que à síndrome de estolcomo — há problemas, não se pode tapar o sol com a peneira.
Mas isso é tão importante assim?
Sim e não. A mudança de tom pode ser desagradável para parte dos telespectadores, mas ela é importante para, nesse ínterim, provocar os personagens dentro da sua zona de desconforto. Evangelion não se trata bom por retratar bem questões de saúde mental — nem a ficção deve entregar algo em específico ao que ela não é uma mímese da realidade — contudo, por optar por inserir essa abordagem, entre outros aspectos, estética (mas não romântica) e não didática, o time de produção tira o assunto do campo comentário de rede social e o eleva à arte — e a partir daí cada experiência é única.
Asuka é um trem sem controle, mas não menos psicologicamente abusada que o resto do elenco juvenil. A existência “de” Rei é uma tragédia em si só. Shinji, o protagonista de shounen chorão primordial, é até alvo de um ódio desmedido pelo público externo — mas a série faz questão de mostrar que ele não é um coitado, ou um santo.
Leia Também: Animes Que Estragaram o Próprio Gênero
O legado de Evangelion vai além do gênero mecha e da própria demografia. Está nas criação de memes pela comunidade décadas após seu fim, está na vanguarda pela estética futurista, mas também nos title cards e na sua trilha sonora acertadíssima: o clássico “Fly Me to the Moon”, que nunca mais foi o mesmo, desde sua aparição na animação, e a energética abertura “Uma tese de anjo cruel”; é difícil falar em coesão sem mencionar essa dupla que traz início, meio, e fim ao argumento da trama.
Em retrospecto, todo otaku que quer se propor a conhecer a história da comunidade e da animação japonesa deve ver Evangelion, o que não uma obrigação — quem somos nós para dizer o que se deve ou não assistir! — mas uma dessas obras que vão ser sempre referência por excelência em algum campo (aqui, pelo amor à animação). Se ela é tão irretocável assim, já podemos discordar, mas é só tocar a cornetinha apocalíptica temática que não há quem não fique tocado e queira também gritar para Shinji entrar no robô.
Imagem Destacada: Divulgação/MUBI
Quer estar por dentro do que acontece no mundo do entretenimento? Então, faça parte do nosso CANAL OFICIAL DO WHATSAPP e receba novidades todos os dias.