Mais de vinte e cinco anos após o lançamento da série original, o público finalmente pode apreciar o fim da franquia na sua série de reimaginações do mesmo universo, o universo Rebuild, iniciado em 2007. Como era aguardado pelos fãs, a animação conclui a saga de maneira circular, e de praxe talvez levante mais perguntas que respostas. “Evangelion 3.0+1.0 Thrice Upon a Time” está disponível na Amazon Prime Video, onde já quebrou o recorde da plataforma de streaming; no Brasil recebe o subtítulo “A esperança”.
Falar de “Evangelion” é um assunto delicado, sobretudo pois para além das complexas minúcias da trama, é uma daquelas obras que passaram por uma apoteose moral e costumam gerar opiniões fortes, sejam elas positivas ou negativas. Em “3.0+1.0” a discussão sobre alguns pontos já levantados em outros momentos pela comunidade alcançam a sua coroação, com o espectador podendo revisitar antigos lugares ao longo de 2h35m, trazendo em evidência o seu melhor até falhas antigas que se fazem soar com maior facilidade por aqui.
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O apresentar dos fatos em Evangelion sempre foi o grande divisor de águas para muitos e aqui não é diferente. Na verdade, essa última sequência talvez exponha as engrenagens do enredo de modo não muito convincente, isto porque para além do storytelling em colcha de retalhos, que por si só pode ser um trunfo, onde a audiência tem que costurar as linhas de história que são dadas e completar algumas lacunas, o longa deixa a desejar no desenvolvimento de personagens e do aproveitamento de cenas — mais: se entender a construção de mundo de Hideaki é a grande dor de cabeça para aqueles que desejam adentrar na comunidade, compreender o agenciamento das ações é ainda mais que nunca um desafio.
A título de exemplo: logo no início o espectador é confrontado com uma cena de batalha que pouco adiciona — utilizando de palavras modestas — ao conjunto senão iniciar o quarto filme com o calor das batalhas mechas, que Evangelion foi responsável por consolidar na cultura pop. Outras sequências com efeitos exagerados de luz — que não apenas no filme, mas em outros momentos da saga, seriam um bom convite para um aviso de portadores de fotosensitividade e epilepsia — também podem levantar a questão de se, com anos de produção, a economia dramática está mesmo sendo aplicada, vide o conceito da Arma de Tchekhov. Em suma: sendo uma série conhecida por explorar tão genialmente simbolismos em cada cena, algumas sequências adicionam informações dúbias ou inexistentes para o público, nesse que deveria ser o fechamento de Evangelion.
Outro elemento que não escapa aos olhos, ainda no desenvolvimento de personagem, é a diferente forma como os corpos são representados. Se a nudez encontra suas eventuais explicações com defesas variadas, em Thrice Upon a Time não são poucos os enquadramentos corporais duvidosos de personagens femininas menores de idade, deve-se ressaltar — estamos falando de ti, Asuka — sejam em diálogos corriqueiros ou em momentos mais sublimes, o que outra vez retoma a questão de até que ponto esses shots deveriam estar inseridos e se são verossímeis ou não, spoiler: não são, estando apenas para apelar a uma fantasia masculina e tirando toda a seriedade de qualquer cena dramática.
Como um anjo cruel, Garoto, torne-se uma lenda
Trecho de “A Cruel Angel Thesis”, Yoko Takahashi, abertura da animação original, tradução própria. Grifado aqui como referência a esse apelo ao público shounen.
Tratar do conceito de morte do autor e/ou separação do criador da obra é complicado quando Evangelion é uma extensão do próprio Hideaki. Encarando a depressão na pele e tornando a luta contra doença em uma obra de arte e, mais além, em um mecanismo de enfrentamento, Anno deixa sua marca explícita ao longo da franquia em diálogos consigo mesmo e para com quem vê: se antes era Shinji que recebia várias vozes interventoras ao seu auxílio, aqui ele se vê capaz de tomar as rédeas de sua própria vida, seja contra a depressão, quanto rumo à vida adulta.
E como era de se esperar, de longe nem tudo são baixas. O ponto alto do filme são também os momentos mais vagarosos, até autorreferenciais ao que a obra almeja significar. As discussões sobre individualidade e o coletivo mais escancaradas dão lugar ao implícito, em posição de aconchego e o refresco que os fãs tanto precisavam — afinal, também remete à realização longínqua de que Evangelion nunca foi um anime sobre robôs gigantes.
O saldo final é muito positivo, com um filme de delineados bem diferentes de tudo já apresentado até então, sem deixar de resgatar as emoções que Evangelion sabe muito bem proporcionar, tanto nas cenas de ação brilhantemente coreografadas, quanto no drama existencial que deve apelar para todas as idades. Um fim [?] digno para uma grande franquia, ainda que talvez não alcance o clímax trágico de The End of Evanelion (1997), da série original.
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