O vilão ainda mais decadente
Alguns manuais de escrita não recomendam que um texto voltado à análise de uma obra artística seja redigido na primeira pessoa, por diversos motivos. Geralmente, sigo essa diretriz, mas, para “Coringa: Delírio a Dois”, optei por desconsiderá-la. Isso porque este que vos escreve é extremamente crítico em relação à falta de novidades e criatividade dos atuais filmes baseados em quadrinhos, especialmente os de super-herois. Sim, eu sei que Coringa não é um herói, mas é um personagem de suma importância para a cultura pop, assim como Batman e Superman, e ele está inserido na recente leva de produções que, a cada dia, torço para que deixem de ser realizadas, pelo menos por um tempo. Portanto, quando os primeiros trailers foram lançados, logo me veio à mente: “Ah, que aborrecimento, mais um filme do universo dos super-herois da DC. Alguém ainda suporta isso? E ainda enfiaram um musical no meio! (não sou fã de musicais). Será uma decepção! Passarei longe!”.
Pois bem, obviamente, por conta do ofício, não consegui me afastar, e, após mais de duas horas de projeção, posso afirmar que seria uma pena não ter assistido ao filme de Todd Phillips. Ignorar suas qualidades seria incoerente da minha parte, uma vez que ele realiza o que eu e muitos outros desejamos: utiliza uma fórmula há muito esgotada e insere elementos inusitados a ela, conferindo um ar de novidade. Ou seja, ele é cinematograficamente estruturado como qualquer filme do subgênero de super-heróis (continuarei a usar “super-heróis” para fins de contexto); no entanto, possui subversões em seu roteiro que o colocam acima do que vem sendo produzido pela DC ou mesmo pela Marvel. Uma dessas subversões é a inserção do “musical”. “Coringa: Loucura a Dois”, na verdade, não é um musical; ele é musicado. Portanto, não espere por personagens que interrompem seus diálogos para cantar (graças ao universo!). Isso até acontece, mas se trata de momentos em que os personagens estão sonhando, delirando ou enfrentando pesadelos.
Leia Mais: Coringa: Delírio a Dois | Loucura ou genialidade?
Os momentos de cantoria são o que há de mais notável no filme, não pela coreografia das cenas, que basicamente inexistem, mas pela relevância de cada uma das músicas para os personagens. Além disso, é claro, contam com o talento de Lady Gaga em suas performances. Joaquin Phoenix até canta uma vez ou outra de forma breve; contudo, acertadamente, é sua parceira de cena quem domina esse aspecto. Outro fator primordial para que a proposta do roteiro funcione é a construção do personagem, algo que já era bem realizado no filme de 2019. O que há de diferente aqui é que Arthur Fleck, anteriormente adorado por uma legião de admiradores após o final do longa anterior, agora se encontra em ostracismo, mesmo mantendo uma base de fãs. Ele está preso, afastado dos palcos e dos holofotes novamente. Retornou a ser o velho fracassado de sempre, só que agora com o gostinho do sucesso em sua mente. Suas piadas sem graça não são mais contadas, e sua única plateia são os guardas da prisão Arkham e os outros detentos. Entre um dia e outro, à espera de seu julgamento, sua miserável vida piora gradativamente. Ele é constantemente espancado pelos mesmos guardas que riem de suas piadas, e os outros presos são ainda mais insanos que ele.
A deterioração do personagem, novamente bem retratada por Phoenix e sua assustadora magreza, não é costumeiramente abordada em produções comerciais que custam milhões a um grande estúdio. Claro que, ocasionalmente, há um vilão que passa por esse processo e se transforma em um monstro, às vezes até literalmente, mas sempre dentro de um contexto de dominação do mundo ou do universo. Fleck, como antítese, deseja apenas voltar a fazer sucesso e ser visto e amado pelos outros, principalmente por Lee. Trata-se, portanto, de um simples mortal completamente sonhador. Assim, Phillips constrói uma história social e humana, insere o sonho com a figura de Lee Quinzel (Gaga) e, no meio disso, dá um tapa na cara de seu protagonista e diz: acorde, a felicidade e o amor não fazem parte da sua realidade, é apenas um delírio. A realidade, então, se revela no final de “Coringa: Delírio a Dois”, e ela é impactante e extremamente plausível, mesmo para um personagem oriundo dos quadrinhos.
Leia Também: U2 lança novas faixas inéditas da edição especial de How To Dismantle An Atomic Bomb
.
Imagem em destaque: Divulgação/Warner Bros. Pictures Brasil
Quer estar por dentro do que acontece no mundo do entretenimento? Então, faça parte do nosso CANAL OFICIAL DO WHATSAPP e receba novidades todos os dias.