Se fôssemos resumir “Aquarius” em uma única frase, ela seria: “Memórias e luta de classes.” Claro que temos várias camadas no roteiro muito bem construído por Kleber Mendonça Filho, mas são nesses temas que o filme mostra toda a sua força.
Clara, vivida por Sônia Braga, mora em um charmoso apartamento que é uma espécie de cápsula do tempo; está abarrotado de vinis, mobília antiga, livros e, sobretudo, de memórias. As memórias que ela carrega são intrínsecas ao apartamento, porque foi ali que ela viveu no passado com seu falecido marido e com os seus já desgarrados filhos. Há similaridades de como Kleber Mendonça Filho filma Clara e o prédio Aquarius, retratando ambos com uma aura um tanto mística e misteriosa, apesar da extrema naturalidade das imagens; como se fossem seres que não estão nesta realidade. Durante o filme há inúmeras demonstrações de que o diretor quer “fundir” o prédio à persona de Clara; como nos cortes de planos gerais da fachada do prédio para o primeiro plano do rosto da mulher, ou mesmo na sequência em que a câmera se afasta aos poucos mostrando-a saindo à varanda, para depois, mais afastada ainda, mostrar o prédio e sua dona encaixotados por inúmeros outros condomínios modernos construídos em volta. Os tons neutros e um pouco envelhecidos do figurino da personagem alinhados com o branco e depois o azul da fachada do desgastado prédio também são indícios da intenção do diretor em transformar Aquarius e a mulher em uma coisa só.
Clara vive em um mundo que não a pertence, onde o passado foi substituído, e tudo que lhe resta é Aquarius, mas este também está prestes a sumir graças a uma inescrupulosa construtora que pretende demoli-lo. O plano da construtora é barrado por Clara que não quer se desfazer de um lugar que faz parte de sua vida. O embate entre ela e a poderosa empresa é um exercício de genialidade por parte do diretor Kleber Mendonça Filho, jogando-nos em um turbilhão de emoções que vão da alegria, passando pela nostalgia até a pura tensão – esta última graças às inúmeras tentativas nada ortodoxas da construtora em fazer com que Clara desista do apartamento. Como orgias nos apartamentos vazios, queima de colchões na garagem, cultos evangélicos e uma infestação de cupins manipulada por funcionários da construtora.
A luta de classes de “O Som ao Redor” está presente em “Aquarius”, com a diferença de que no primeiro filme havia a “invasão’’ da periferia na vida de pessoas de classe média, já o segundo há a classe média sendo acossada pela classe pobre e pressionada pela classe mais rica (representada pela construtora), transformando um mundo que era simples na década de 80 – que é onde Clara tenta se manter, pelo menos em espírito – para o show de horrores do capitalismo, onde não há pessoas e sim selvagens. Um exemplo é o jovem arquiteto da construtora; o nêmeses de Clara (que se apresenta com um assustador olhar de cifrões) e o resto dos moradores que só querem que a mulher venda logo o apartamento para que possam receber seus dividendos.
Luta de classes, embate de gerações, roteiro competente, um diretor com extremo domínio de sua arte e uma linda Sônia Braga – que mesmo com seu 66 anos de idade ainda consegue ser uma mulher sexy – transformam “Aquarius” em um dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos. Como os cupins da história, temos um governo que tentou destruir e impedir que o filme fosse visto, pois trata-se de uma obra de contestação, que se pergunta onde vamos parar com o país entregue nas mãos de pessoas que possuem apenas o capitalismo como bandeira.
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