A montagem dos Satyros da clássica obra de Arthur Miller, “As bruxas de Salém” é um monumento, e como tal, merece ser reverenciado. Para além das excelentes atuações, se o grupo houvesse apenas se apropriado do material original, algo que fizeram com maestria, a apresentação já seria boa. Entretanto, eles foram além: a qualidade da cenografia, da iluminação, dos figurinos, do domínio do pequeno palco, isto é, a ambientação estética, alcança a perfeição. As atuações se destacam com exímia qualidade, são responsáveis pela construção de uma experiência imersiva que vai além do mundo do palco, transportando teatralmente o público para a Salém do século XVII.
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A peça mantém quase integralmente o texto de Miller, com minúsculas alterações, tais como o diálogo direto com o público mediado por um dos personagens em dois momentos. A trama desenrola-se quando um grupo de garotas em Salém, após serem descobertas brincando com rituais de religiões não-cristãs, é acometido por estranhas convulsões e começam a formular acusações de bruxaria contra algumas mulheres da comunidade, desencadeando uma onda de histeria religiosa. À medida que a comunidade se torna um caldeirão fervente de suspeitas e desconfianças, o enredo revela as complexidades das relações humanas, a fragilidade da verdade e a voracidade do medo.
Os acontecimentos são mostrados linearmente, com poucas regressões. Quando elas acontecem, são bem sinalizadas pelo roteiro e construídas no palco pelo uso da iluminação, não prejudicando em nada o ritmo da peça. O jogo temporal articula na cena os desdobramentos e no plano extracênico as escolhas que vão sendo tomadas pelas garotas (que saberemos depois se tratar de uma farsa) e pelo temível tribunal. A tensão entre o saber e o não saber o que é verdade ou mentira forma uma grande nuvem que faz com que o público se questione acerca da veracidade e moralidade dos personagens, salientando o clima de desconfiança e insegurança diante do caos que acompanha.
Após o primeiro ato, os fatos são tratados como iminentes e há um aumento da tensão dramática. Mesmo para alguém que já conhece o desfecho, é inegável a habilidade do grupo em sustentar a tensão para a construção dos momentos finais, de tal modo que até a última cena não conseguimos ter certeza do que realmente acontecerá.
A cenografia optou por utilizar alguns móveis, tais como cadeiras e mesas e uma cama, com rodinhas, o que facilitava de maneira significativa a transição das cenas e a construção imaginária do cenário, pois poucos objetos o ambientavam perfeitamente. Essa decisão demonstra um admirável exercício de sutileza ao abraçar a simplicidade cênica, pois acessórios mínimos para uma cena apenas permitiam que os impulsos narrativo e dramático se tornassem os verdadeiros protagonistas.
O eixo maior de sustentação da cenografia foi a iluminação, assinada por Flávio Duarte, que não apenas conseguiu evocar a atmosfera angustiante do período, uma vez que a tensão criada era tão palpável que dava para ser cortada com uma faca, mas também conseguiu captar os meandros do texto e as complexidades psicológicas dos personagens, de modo que cada um desses elementos ficou bem perceptível e absolutamente sem nenhuma falha.
A peça trabalha com três núcleos de personagens, o primeiro compõe a família Proctor e seus vizinhos, o segundo é composto pelo grupo de meninas, que embora tenham poucas cenas, são o motor para os acontecimentos, e o terceiro é formado pelos membros da Igreja e do Tribunal de Inquisição. Embora o roteiro conduza John Proctor (Henrique Mello) para certo protagonismo, tendo em vista ele ser um dos personagens que se relacionam diretamente com os demais núcleos, a hierarquia dramática é bem balanceada entre todos eles, existindo uma quase equivalência de importância para a trama. Mesmo personagens que aparecem pouco, tais como Rebeca Nurse (Marcia Dailyn), são cativantes e possuem arcos e profundidades psicológicas que acirram a emotividade da peça, o tempo inteiro mobilizando emoções. Isso ocorre porque o espetáculo não explora um ponto de vista, mas o de todos os personagens.
Os figurinos idealizados por Elisa Barboza e Marcia Dailyn também entram no rol dos elogios. Eles são impecáveis e conseguem, em conjunto à cenografia e a iluminação, transportar o público para o mundo de Salém, pois cada traje é visualmente concebido para refletir a austeridade e a autenticidade do século XVII.
Nesse ponto, talvez a limitação da linguagem não me permita expressar o quão catártica consegue ser a peça. As atuações do grupo Os Satyros são tão verossímeis que alcançam o patamar de excelência artística. Não há, de modo algum, nenhuma atuação meia-boca ou que se destaque menos. É categórico afirmar que o elenco, como um todo, entregou performances sinceras e mergulhou verdadeiramente na complexidade de cada personagem, aprofundando a tensão discursiva que o texto propõe.
O grupo não apresentou apenas uma peça, mas transportou a plateia para Salém, dada a imersão da ambientação e das atuações. Afirmar isso ainda é pouco, pois a incorporação estética da cena da tentativa de golpe de 8 de janeiro, falas com referência à política nacional, embora sejam recursos estéticos, complementam muito bem a proposta geral do texto de Miller, reavivando-o.
Por fim, sair da montagem de “As Bruxas de Salém” do teatro de Os Satyros significa sair transformado, com o temor ao Brasil atual, dada as profundas reflexões que o grupo construiu através da ressonância emocional dramática e da apropriação inteligente do texto de Arthur Miller.
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