A peça “Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto”, apresentada no SESC Pompéia entre o meio de maio e o começo de junho, permite a oportunidade de refletir sobre a articulação entre os desdobramentos do trauma histórico e a importância do teatro marginal. Ao mergulhar no enredo da peça do Grupo Clariô de Teatro, é possível observar como essa relação se desenrola no palco. Nesta crítica, nos interessa descrever como a forma e em que medida o uso de um fato histórico contribui na construção artística de uma peça.
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É essencial traçarmos o contexto em que se passa a história. Situada no começo do século XX em Crato, interior do Ceará, a peça retrata a história do Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, que é liderada por José Lourenço, um trabalhador de latifúndios, que migra para Juazeiro do Norte e conhece o Padre Cícero, se convertendo no beato Zé Lourenço e se tornando líder de uma comunidade pobre no Sítio Baixo Dantas. Esse local começa a prosperar e a compartilhar igualmente a produção agrícola, o que incomoda a elite coronelista da região, que se une à força jagunça e invade o sítio.
O beato foge com a comunidade e se muda para o Caldeirão dos Jesuítas, recriando a comunidade igualitária anterior. Lourenço recebe de presente do padre Cícero um boi chamado Mansinho, que posteriormente é morto pela elite local devido a boatos infundados. Aqui, o boi Mansinho introduz o terceiro elemento importante da história, que não é apenas histórico, mas fundamental: a inserção do mito e da religiosidade. Se por um lado o boi é introduzido com a estética do bumba meu boi, por outro ele funciona como metáfora futura de toda aquela comunidade.
O novo local é invadido e destruído pelo governo, que os acusa de comunismo e fanatismo religioso, resultando em uma chacina com centenas de mortos. José Lourenço consegue fugir para Pernambuco, mas o corpo dos seguidores nunca foi encontrado.
Ao abordar esse acontecimento traumático, pouco relatado na história oficial do Brasil, o grupo utiliza da estética do teatro marginal, pois “[…] a memória do trauma é sempre uma busca de compromisso entre o trabalho da memória individual e outro construído pela sociedade.” (SELINGMANN-SILVA, 2008, p. 67). Tendo em vista a História contar sempre o lado dos vencedores, ainda que hoje em dia se pense na dialética, os grupos periféricos são pouco mencionados e raras vezes têm o seu ponto de vista representado, o que faz com que o trabalho do grupo Clariô reivindique esse direito.
“O passado é uma empresa do imaginário, seja no plano da história, seja no da criação literária.” (WEINHARDT, 2002, p. 105). A peça se constrói em torno dessas lacunas históricas, dada a escassez de documentos e registros sobre a chacina de Santa Cruz do Deserto, onde a imaginação é o limiar inicial para criar situações e demonstrações, pelo mecanismo teatral, do que foi e do que poderia ter ocorrido naquela comunidade pobre. “A imaginação é chamada como arma que deve vir em auxílio do simbólico para enfrentar o buraco negro do real do trauma. O trauma encontra na imaginação um meio para sua narração.” (SELINGMANN-SILVA, 2008, p. 70).
A peça “Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto” não se limita apenas a uma representação dos eventos do buraco negro histórico citados acima, mas busca traçar paralelos com os dias atuais a partir da situação das favelas (Há um recorte simplório para demonstrar isso, na figura do mestre Joaquim). Essa abordagem enriquece a experiência teatral, pois o público consegue se envolver com a trama no passado e reconhecer os resultados históricos que ela traz à tona, as nominando explicitamente, inclusive. Isso ocorre através do desenvolvimento dos personagens e situações dramáticas, o que nos dá um gancho para elogiar as atuações do elenco.
Em relação aos intérpretes Alexandre Souza, Augusto Iuna, Cleydson Catarina, Martinha Soares, Naloana Lima, Paloma Xavier, Rager Luan, Uberê Guelé e Washington Gabriel, não há do que reclamar. O texto declamado é vívido, o tom da voz é vibrante e alto, de modo que não é apagado com o som que toca ao fundo, algo recorrente mesmo em superproduções de teatro musical. Eles utilizaram a estrutura do teatro de arena de maneira exemplar, então a presença de palco, o movimento das danças e o uso do cenário tornam-se elementos dignos de serem ensinados por eles para outros grupos.
Nas palavras de Alan Mendonça, que assinou o texto junto com Uberê Guelé, “O espetáculo ‘Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto’ apresenta a estética do Teatro de Encantamento, com seus dizeres populares, suas cantigas de reisado, como também com os elementos da congada e dos maracatus”. O aspecto sonoro, sob a direção musical de Naruna Costa, trouxe ao palco músicas muito boas que se impõem presentes, não utilizadas apenas como deleite estético, mas como recurso épico.
Aqui cabem elogios aos musicistas Giovana Barros (violino, rabeca, efeitos e voz), Thaís Ribeiro (flauta transversal, pífanos, percussão e voz) e Naruna Costa (percussão e voz) pela excelente execução do plano orquestral da peça.
A encenação e a direção de Cleydson Catarina e Naruna Costa em “Boi Mansinho e a Santa Cruz do Deserto” desempenham um papel fundamental na conexão entre o drama histórico e arte teatral. A cenografia e figurinos pensados para referenciar a congada e o maracatu criam uma atmosfera que coloca em diálogo o passado e o presente cultural, que leva o público ao mundo desconhecido por meio da cultura conhecida, o que se constitui em um acerto que aumenta a ressonância emocional e a beleza da peça, algo possível apenas por apresentar um predomínio artístico, não apegado apenas à História, como figurinos de época, por exemplo.
O cenário pensado por Alexandre Souza e Rager Luan vai se construindo conforme avançam os acontecimentos da história, o que foi muito bem realizado e separa os atos apresentados no palco. Em relação ao uso da iluminação, ela é acertada em alguns momentos, como nos quais a peça não acontece no palco, mas em outros deixa a desejar.
Embora seja raro um comentário com tom mais pessoal em uma crítica, registro aqui meus elogios a Martinha Soares, Nalona Lima e Uberê Guelé em relação ao trabalho com figurino, as cores, tecidos, maquiagem e adereços, que são muito vibrantes e agradáveis visualmente, atenuando o conflito que ocorre no palco.
Em relação ao tempo de duração, é uma história longa e cansativa. Embora algumas peças tenham um tempo similar, nesse caso específico, onde o público precisa processar diversas informações visuais e textuais, o que ajudaria a fluidez da peça seria o recurso do intervalo de quinze minutos. Isso não prejudicaria o roteiro, pois ele é competente em não deixar pontas soltas.
Para o já citado Alan Mendonça, “Esta peça diz da vida e diz da morte, mas a morte, aqui, se apresenta como um dormir e um acordar para o encantamento do imaginário, uma costura entre a dor e a vida em morte e a morte encantada em vida, o renascer por luta entre fitas coloridas, cantos e tambores, com o devido respeito a tudo que se foi e de tudo que será”. Essa concepção é importante, porque é uma peça com ecos do teatro marginal, mas com predomínio do teatro histórico.
Através dela, o público não é apenas um espectador, mas uma testemunha do tempo passado no tempo presente. E como “o testemunho é uma modalidade da memória” (SELINGMANN-SILVA, 2008, p. 73), é inevitável afirmar que o grupo Clariô conseguiu utilizar um fato histórico ocultado da história do nosso país em sua produção artística, honrando a memória dos que já foram e denunciando a situação atual, através da imaginação enquanto recurso artístico.
Referências Bibliográficas
SELIGMANN-SILVA, Márcio. Narrar o trauma: a questão dos testemunhos de catástrofes históricas. Psicologia Clínica, Rio de Janeiro, v. 20, n. 1, p. 65-82, jan. 2008.
WEINHARDT, Marilene. Ficção e História: retomada de um antigo diálogo. Revista Letras, Curitiba, v. 58, n. 1, p. 105-120, jun. 2002.
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