Logo no início de “Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades”, já é possível perceber que se trata de um filme que segue por caminhos não convencionais. Isso porque a sequência de cenas da introdução se passa durante um parto, no qual o médico informa à mãe que o bebê lhe disse que não quer nascer. Ele prefere ficar no útero. O que se segue posteriormente é tão bizarro que é preferível não expor neste texto e deixar com que o espectador se impressione. É preciso dizer, no entanto, que Alejandro González Iñárritu conduz sua obra desde o início impactante até quase seu final como uma peça surrealista cheia de momentos tecnicamente belos e criativos.
Talvez, Iñárritu tenha se inspirado em Buñuel para construir seu aparato narrativo que o auxilia a contar a história de Silverio (Daniel Giménez Cacho), um jornalista/documentarista em crise de identidade. Se o cineasta mexicano tivesse escolhido um formato habitual, seu filme, provavelmente, teria caído em uma vala comum. Portanto, “Bardo” é como um sonho, principalmente por causa da fotografia de Darius Khondji, que faz sua câmera flutuar levemente entre uma cena e outra em planos sequência demorados. As cores vivas fazem com que o clima onírico esteja sempre presente, enquanto que há trechos mal iluminados que remetem a um terrível pesadelo.
É na escuridão, diga-se de passagem, que é possível notar — através de vários diálogos em que Silverio enaltece a cultura de seu país e rechaça o comercial pasteurizado vindo dos EUA — a culpa que os autores sentem por terem “se vendido” a Hollywood. O passado imperialista dos espanhóis também é explanado em uma discussão entre o protagonista com Hernán Cortés, que se passa no topo de uma pirâmide formada por cadáveres de indígenas. O capitalismo dos estadunidenses é outro a aparecer porque a Amazon compra um território mexicano. Los Angeles foi tomada no passado, agora o dinheiro substituiu as armas em mais uma ocupação.
No entanto, acima da política e da arte, “Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades” é uma jornada de descoberta pessoal. Silverio sente que não merece ser considerado mexicano, e mesmo morando há mais de quinze anos nos EUA, não faz parte daquele país. Ele está em um limbo no deserto, enquanto vê imigrantes indo e voltando. Claramente é um sentimento de profunda insatisfação de Iñárritu, que criou uma fábula para tentar expulsar seus demônios. Pena que o seu clima fabuloso surreal seja prejudicado quando, em certo momento, o roteiro explique tudo racionalmente. Com isso, o texto coloca um pé no concreto com medo de que o espectador não o entenda completamente, e se rende, portanto, ao “imperialismo” do público estadunidense da Netflix, que não suportaria ver um filme sem sentido e ainda por cima em espanhol legendado.
Alejandro González Iñárritu, por fim, escolhe um lado.
“Bardo, Falsa Crônica de Algumas Verdades” foi visto durante a 46ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
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